EI, VOCÊ,EMPREGADOR! shellAHAvellar

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A Consolidação do poder da burguesia na segunda metade do século XIX. Ao lado dos ricos e os poderosos (os “mais aptos”) impondo a ordem aos pobres e camponeses (os “mais fracos”).

Ei,Você,Empregador!

Que cria e desconstrói

À sua imagem e semelhança

Estupra seus homens

E apalpa as mulheres

Ei,Você,Empregador!

Que tem cobras

No bolso

E lagartos na boca

Que menstrua no trabalhador

Para ficar bem na fita.

Ei,Você,Empregador!

Holofote de sombras

Que apodrece esperanças

Que acinzenta o azul

e suja estrelas

Ei,Você,Empregador!

Ainda é tempo

De remexer seus destroços

Pendurar o terno no sol

Trocar as nódoas

E desatar os nós.

Ei,Você,Empregador!

É hora, aqui e agora

De negociar com a poesia

E se despir dos cacos

De sua desimportância

Ei, Você,Empregador!

É urgente

Se contaminar de pássaros

E olhar seu operário

Como se fosse lua cheia.

Ei,Você Empregador!

Hoje é dia de ventos

Manhã de desflorar ódios

E inaugurar parcerias

Ei,Você, Empregador!

O futuro é o ontem

Que grita :Presente

E engole ondas

De mares bravios

Para engravidar os rios

De carnavais de lírios

Deixando o poder

Fora de si

EI,VOCÊ,TRABALHADOR! shellAHAvellar

Operários-Tarsila do Amaral

Ei,Você,trabalhador!

Retalho de desprezos

Máquina de moer carne

Fragmento de horrores

Que impõem o silêncio

Diante do podre poder.

Ei,Você,Trabalhador

Colecionador de combates

Exumador de sonhos

Em holerites de Alfarrábios

Ei,Você, Trabalhador

Que bate à porta do corsário

De armações ilimitadas

E, se lança em alto mar

Por um punhado de moedas,

Ei,Você,Trabalhador

Judas de si mesmo.

Você mesmo,

Fugitivo da própria história

Ainda é tempo

De se reescrever .

Ei,Você, Trabalhador

De pé no cais

De frente pro Atlas

Com bilhete de entrada

Para infinitas possibilidades.

Ei,Você, trabalhador

Em Sua carta de alforria

Elipse de maravilhas raras

Hoje,Você assina seu nome

Com sobrenome Liberdade.

MEU ROCHEDO DE GIBRALTAR Shellah Avellar

Para Emy Avellar

Filha legítima de Saturno. Capricorniana com ISO 9000. Sim. Esta é a minha mãe.

Com tudo o que tem direito. Ou não. Até porque Saturno só tem deveres.  E disciplina. E regras e mais regras e limitações. Seu êxtase é a restrição.

“ Não” é sua palavra de ordem. Costumo dizer, que os capricornianos ao nascer, quando é dada a palmada inicial, marca do despertar propriamente dito, primeiro dizem “ Não”. Depois, choram.

Quando penso em minha mãe, a primeira imagem que me vem é do Rochedo de Gibraltar.

Sim. Ela está sempre lá. Inquebrantável. Impávido colosso. No mesmo lugar. A coluna de Hércules.

Quando adentra um ambiente qualquer, escolhe sua cadeira ou poltrona e ali finca suas raízes. Toma posse. Ali é seu trono. Dali ela observa o mundo e as pessoas e ordena.

A sensação que dá é que depois de meia hora, as raízes começam a brotar de seus pés e mãos e vai nascendo um carvalho portentoso que abriga a todos com sua sombra e nos alimenta com seus frutos saborosos e nos refresca com sua ramagem abundante.

Infância difícil. Aprendeu muito cedo a se virar. Para ajudar a mãe a pagar as contas.

Feliz de quem a contratava. Dedicada e competente. Tudo que um chefe poderia desejar de uma trabalhadora ideal: obediência, pontualidade e fidelidade aos protocolos.

Casou-se aos 19 anos com o primeiro e último amor de sua vida.

Entretanto este conto de fadas foi atravessado por alguns terremotos. A primeira e a segunda gravidez não vingaram. Até, que por fim, na terceira tentativa, depois de muitos exames e procedimentos, aconteceu a minha aparição, não sem dar bastante trabalho.

Nasci ao contrário, e sagitariana da Gema com Júpiter pulsando nas veias seu grito de liberdade e com Urano no meio do céu, já dando sinais de que vinha para contestar as regras e desordenar os princípios rígidos de Saturno.

Desde cedo estas diferenças se tingiram de cores mais nítidas e com o passar do tempo o embate era constante.

Como a relação era vertical, ao desobedecer, eu apanhava, todo dia e outro também. Por todos os motivos ou motivo algum.

Naquela época de criança, cresci achando que minha mãe era injusta.

Mais tarde compreendi que ela brigava consigo mesma, por não saber definir sua insatisfação e revolta contidas. E, eu, era a próxima mais próxima.

Entretanto ela me dizia: -Se desobedecer, você vai apanhar. Você escolhe!”

Eu escolhi apanhar. Porque ia dar no mesmo. A surra era certa. E, desobedecer era “minha praia”. Porque o simples fato de eu existir já deixava explícita uma oposição. Por nossa visão absolutamente diversa de mundo .

Desenvolvi um mecanismo de resistência e me alienava durante a surra. Pensava em outra coisa e não sentia doer.

Aí, para complicar mais ainda as coisas, veio a gloriosa ditadura. Que entrou de botas em minha casa e na minha vida. Era mais uma muralha para pular.

Me lembro que meu pai , me enviou uma carta ,através de um jovem recruta, onde dizia que estava preso por pensar diferente dos homens do poder.

Aquilo, caiu como um raio na minha cabeça. Eu também apanhava, apenas por pensar e agir diferente do “aparente” poder vigente dentro da minha casa. Que ironia!

Presenciei a luta de minha mãe, incansável em correr atrás de saber onde estava meu pai. Levado tantas vezes pela repressão. Violência esta, que entrava sem pedir licença. Invadia nossas vidas e nos destroçava várias vezes.

Ali se revelou a filha de Saturno. Apesar do medo, agarrou a vida “pelos chifres” e foi atrás de advogados. E, buscou nos quartéis do Estado do Rio de Janeiro, toda e qualquer possibilidade de informação sobre o paradeiro de meu pai. No meio de tanta traição e medo, a saga começou. Estudávamos nos ônibus as matérias para as provas. Ela cursava o magistério, sob incentivo de meu pai. E eu o ginásio. Íamos no Dops(Departamento de Política e Ordem Social) do Rio e Niterói. AMAN(Academia Militar de Agulhas Negras) em Resende e BIB (Batalhão de Infantaria Blindada)em Barra Mansa. Só de escrever estas siglas ,ainda me arrepio.

Testemunhei sua luta para defender e fazer de tudo para tentar libertar o seu companheiro.

No meio de tanta insegurança o Rochedo se manteve lá. Sendo chicoteado pelas ondas turbulentas da vida.

Terminou seu curso, tirando o primeiro lugar do Estado do Rio de Janeiro e lhe angariando a possibilidade de escolher em que escola gostaria de lecionar, em qualquer lugar do Estado do Rio.

E, finalmente quando localizamos o meu pai .

Dois anos e meio após esta desdita de mudanças e de idas e vindas, voltou para casa.

Três anos mais tarde, quando estava começando a se sentir livre.

A vida lhe pregou outra peça.

Mamãe perdeu seu amado. Desta vez ele se foi para não mais voltar.

Enviuvou aos 42 anos. Nunca mais se casou.

A depressão veio e a prostrou. Foi um ano de desespero.

E, eu, que precisava tanto de colo, virei sua mãe.

Precisava tirá-la daquele estupor.

No ano seguinte abriu o curso de Ciências Exatas. Exultei! Era a sua chance de renascimento. Fiz sua inscrição no Vestibular e a minha também, para que não se sentisse deslocada. Passamos. Lá reencontrou amigas de infância. Foi a glória. Sua outra paixão a salvou. A Matemática viera para ficar e se casaram para sempre.

A alegria do desafio voltara a reinar lá em casa. E o vazio foi preenchido pelas amigas barulhentas da faculdade que estudavam e fofocavam juntas.

Outras chuvas vieram. Mas, os anéis de Saturno a mantinham de pé.

Depois perdeu o pai.Um sentimento sem nome.

Lhe dei uma netinha e o gosto pela vida se reacendeu.

E, então se foram a mãe e a irmã. Uma em seguida da outra. Um silêncio solitário por alguns meses.

Teve um diagnóstico de degeneração da mácula. Com a visão comprometida, não poderia deixá-la sozinha , ou com estranhos. Esta tarefa era minha. Diante disto, eu a trouxe para morar comigo por aqui em Sampa.

Foi o tempo certo para aparar as arestas. Muita conversa. Muitas gargalhadas e palhaçadas minhas e da neta para levantar o seu astral. Alguns estranhamentos no início. Mas, temperamos tudo com muito amor ,parceria, companheirismo e perdão.

Sobrevivemos com galhardia.

Até que voou, como um passarinho.

Disse: -Estou cansada. Virou-se para o lado e se foi.

Para encontrar seu grande amor.

Em casa. Sem dor. Sem Uti. Sem hospitais.

Ali estava eu. Lado a lado. Até o fim.

Com a sensação do dever cumprido.

Mais uma vez.

E, agora o que resta é a certeza do reencontro.

E, vez por outra, quando preciso de um alento, me sento na pracinha, embaixo do carvalho e sinto sua presença e sua voz a me sussurrar: -Não desista! Você é uma vencedora!

E ressoa em meus ouvidos:-Tenho muito orgulho de ser sua mãe.

E eu respondo- Sou uma felizarda por encontrar a resistência que moldou em mim a revolucionária.

Obrigada, mãe. Guerreira Saturnina. A honra é minha.

E veio uma floração de claridades.

Boralá em frente!

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Gibraltar – Último símbolo do domínio dos mares pela Inglaterra | Monitor Mercantil

A TEIA DE PENÉLOPE Shellah Avellar

Para Vovó Lila

Olhar sereno. Profundo. Silêncios ensurdecedores.

Gavetas de retalhos coloridos. Terços imantados nas ranhuras do seu tempo.

Vovó Lila era um oásis no meio das tormentas.

Sim. Sua vida era o entretecer. Era o que acontecia entre alinhavos e desalinhos.

Infância intrigante. Morou numa fazenda que tinha escravos( o que me causa bastante desconforto). Sua mãe, a única filha mulher entre homens. Seu pai, um capataz. Sua mãe foi deserdada por preferir um trabalhador rural e não os pretendentes indicados pelos pais.

Mudaram para um sítio.

Daí, já vinha o conflito, que iria chulear sua história.

De agulhas e linhas em punho vai costurando sua vida, um rosário de lágrimas.

Mocinha, se apaixona pela primeira vez. Mas, segundo ela, o tal moço foi-se embora para nunca mais voltar, deixando seu coração desalentado e algumas ilusões desbotadas.

O destino lhe reserva uma segunda chance. Moço bem apessoado, lá das bandas de Niterói, capital do Rio de Janeiro na época, entra em cena e reacende seu coração desesperançado.

Cai em suas graças e fica à mercê de sua mente afiada e de seu humor ácido. A boa e velha parceria Taurus e Virgo se consolida.

Mas, oh…o equívoco. O tempo lhe mostrou uma outra face deste taurino às avessas, que ao invés de prover, jogava sua vida fora nas cartas e no álcool.

E a insegurança material era a bola da vez. Vivendo de favor, de casa em casa. O que lhe deixou marcas indeléveis e em suas filhas.

Inverteram-se os papéis. A mulher sensível e disciplinada se vira do avesso e forra sua vida com o aprendizado do ofício de costurar e bordar.

Afinal, já existem duas filhas para sustentar. É preciso se fortalecer e resistir às intempéries.

Dona Lila vai à luta. Costura dia e noite e noite e dia. Borda e tricoteia. De tudo faz arte e chega a dar aulas de bordado na multinacional Singer do Brasil.

O resultado é a herança de colchas, toalhas e lençóis de linho bordados à mão e à máquina. Primoroso trabalho que hoje lhe daria um bom troco. Pelo que vejo nas lojas de roupas de cama e mesa , de alto luxo por aí nos shoppings da vida.

Eline Sağlık , como diriam os turcos: -Saúde para suas mãos diligentes e precisas.

Tudo o que fazia era com esmero. Desde a arrumação da casa até a lavagem das roupas e impecáveis passadas a ferro. Sua comida era deliciosa. O aroma dos temperos engoliam a atmosfera da casa e nos fazia salivar.

E suas confecções de indumentárias certamente causariam algum estupor e excitação à Chanel e Dior. Até os meus dezoito anos, eu desenhava e ela confeccionava minhas roupas.

E, repetia, com orgulho:-Uma boa costureira se conhece pelo avesso e pelo acabamento “.

Tudo com a precisão de um reloginho suíço. Creio que desbancava as formiguinhas. Tenho minhas dúvidas se não há um monumento erigido à Dona Lila nos formigueiros profundos deste planeta .

Sinto, até hoje, falta do cheirinho gostoso de sua broa de fubá, que ficava pronta às 15h em ponto. Era só correr para a cozinha que lá estava a majestosa broa, no centro da mesa, junto de um bule de café fumegante.

Eu dispensava o café. Hábito de consumo, que só fui adquirir em São Paulo, muitos anos depois. Eu pegava uma faquinha e tirava somente a casca da broa, porque nunca gostei de maçaroca, nem miolo de pão e nem de pastas. Ela ficava fula da vida e saía correndo atrás de mim e gritava:- “A ratinha já passou por aqui”. E, isto, era todo santo dia e outro também.

Quando meu pai se casou com sua filha mais velha, sua primeira providência foi comprar a casa onde meus avós maternos moravam de aluguel, para sanar de vez a preocupação de minha vó e minha mãe, de ter um teto para chamar de seu.

E, este gesto lhe rendeu uma gratidão milenar e o título honorário de filho forever and ever.

Sempre soube que meu avô materno era adicto de jogos de azar e dependente de álcool. Entretanto, nunca o vi alterado porque minha avó Lila tinha dado um basta naquela vida de esbórnia, para o bem de todas e felicidade geral da nação, colocando remédio em sua comida, para frear o vício que alimentava outros vícios.

Quando meu pai morreu, num acidente de automóvel, meu avô, olhos em chamas, apareceu, embriagado, lá em casa. Eu abri a porta. Ele se ajoelhou e me pediu perdão, dizendo que ele deveria ter morrido e não meu pai. E que tinha perdido um filho. Caiu em prantos e eu com ele. Nos abraçamos e só consegui sentir paz por aquele sentimento tão contundente, misto de admiração e dor.

Anos mais tarde, quando meu avô foi acometido por um câncer avassalador no baço , minha avó Lila cuidou dele com tamanha dedicação e carinho, como se fosse um bebê. O bebê que não cresceu. Que ela cuidou até o fim, como mãe, irmã e companheira.

Lembro-me bem, quando ele, esquelético e já bem fragilizado, sentado no sofá, e minha avó de pé. Ele abraçou sua cintura e descansou a cabeça em sua barriga, e num gesto extremado de arrependimento, agradeceu a ela por tudo e os espinhos foram dando lugar às rosas despetaladas por toda uma existência.

Quando, finalmente, ele partiu, sentada a seu lado no sofá da sala, presenciei seu choro contido e liberado aos solavancos da dor de toda uma jornada de renúncia à sua própria felicidade em prol dos seus.

Ela liberava um suspiro profundo a cada expirada como se o peso fosse demasiado pesado para descarregar de vez.

Anos depois, quando decidi me separar de meu marido, após um ano de relacionamento, e dar um basta num casamento com afeto, mas, prematuro e imaturo, fui me aconselhar com ela. Eu disse: – Não quero continuar. Creio que cometi um equívoco. Gosto dele, mas não quero fazê-lo sofrer. Creio que nos distanciarmos agora será melhor para os dois.

Ela disse: -Faça isto minha filha. Antes que seja tarde demais. Eu não pude fazê-lo. Faça por mim e por você.”

Algum tempo mais tarde, já em São Paulo, quando pari minha filha, e resolvi criá-la sozinha, ela estava lá, de braços abertos para recebê-la.

Pude apreciar finalmente sua alegria.

Seus olhos brilhavam. Era a continuidade. A vida em seu esplendor.

Ela pôde ser, simplesmente avó, na sua mais completa tradução.

Testemunhei seus paparicos e sua volta à infância. As duas, ela e minha filha, brincavam e brigavam pela posse de brinquedos. Uma me fazia queixas da outra.

 E, isto, era cômico e lindo.

Ainda guardo a lembrança de você, vovó, na sua poltrona favorita, com minha filha bebê em seu colo e as duas dormindo o sono dos anjos.

Anos mais tarde, fui acolher minha tia, sua filha mais nova e minha madrinha, sem filhos, que teve um diagnóstico implacável de câncer no pâncreas, fígado e rins. Os médicos lhe deram 3 meses de vida. Fui para os Estados Unidos. Os médicos se enganaram. Ela sobreviveu ainda um ano e meio, após este diagnóstico.

Quinze dias depois que cheguei lá, minha vó Lila, faleceu na Santa Casa de Barra do Piraí, no estado do Rio de janeiro..

Não pude estar com ela. Não havia tempo hábil para chegar para o velório e sepultamento.

Morreu sem saber que a filha mais nova tinha câncer e estava com os dias contados. Não sabia conscientemente.

Mas, resolveu ir-se embora para recebê-la, lá num espaço sem tempo e nem lugar, onde os sonhos se tornam realidade.

Ela não se cansava de repetir em várias outras ocasiões , que eu “puxei a ela, nas artes.”

E eu sou grata, vovó, por você achar que estou à altura de seu talento e de seu DNA.

Espero jamais decepcioná-la, estrela que abdicou de seu brilho. Passarinha que optou pela gaiola. Força obscura de seu elemento terra que explodiu em frutos para dar de comer às filhas. Húmus que vomitou flores para enfeitar a opacidade de seu entorno.

E, eu sei, que em alguma nuvem cor de rosa, você está sentada confortavelmente, tecendo a teia de Penélope, aguardando o retorno de seu Ulisses, para que a profecia dos contos de fadas se concretize e você possa desfrutar da felicidade que tanto merece.

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Penélope – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

VOLVER A LOS 64 Shellah Avellar

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo

Es como descifrar signos sin ser sabio competente

Volver a ser de repente tan frágil como un segundo

Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios

Eso es lo que siento yo en este instante fecundo

Violeta Parra, “Volver a los 17”

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Subindo o tom doloroso até o sublime, minha fala tem um quê de garota, quando se trata do golpe militar de 1964, que está completando agora 57 anos.

Brusca epifania que me aperta a garganta.

Na época eu tinha nove anos de idade. Não sabia do que se tratava. Somente que, de repente, minha casa virou um pandemônio. Ora militares do Exército, ora da Polícia Militar chegavam sem avisar e sem pedir licença e jogavam tudo pelos ares e nos reviravam pelo avesso.

Numa destas vezes, eu brincava no quintal, sol a pino, e uma sombra por detrás me fez voltar a cabeça. E me deparei com uma metralhadora bem diante do meu nariz. Enquanto isso, outros invadiam minha casa.

A imagem de minha mãe desfalecendo e se “urinando” na porta de entrada.

Meu avô trancando as portas e janelas de sua casa, que ficava no mesmo quintal.

Os livros tão amados por meu pai e por mim sendo jogados numa fogueira, sob meus protestos e prantos.

Durante alguns muitos anos, eu ainda desmaiava quando via um carro de polícia ou caminhão verde de manobras do Exército.

Não se falava no assunto. Bullying na escola, quando colegas me importunavam pedindo informações: “Por onde anda o seu pai???”. Naturalmente orientadas pelos pais deles para que eu revelasse o paradeiro do meu e pudessem eles mesmos denunciá-lo à repressão, ou por simples mórbida curiosidade.

Naturalmente não sabia o que era ser esquerda no país.

As incoerências me avassalam hoje, tanto quanto antigamente. Via meu pai ser recriminado e eu também, por tabela, por ser a filha do comunista.

Recebi certa vez uma carta de meu pai por intermédio de um cadete, em que me explicava que estava preso por pensar diferente dos homens do poder e não porque havia cometido algum crime, do tipo roubar ou matar.

Na verdade ainda nem sabia que meu pai estava preso, tamanha era a confusão em que nossas vidas haviam se transformado.

Silêncios. Cochichos. Mistérios. Medo.

E solidão. Muita solidão.

A ARTE IMITA A VIDA?

Em 1997, assisti ao filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira. E dei muita risada. Coisa curiosa ver atores e atrizes, cuja característica principal era o humor (por causa das atuações em divertidas séries televisivas), em papéis de drama extremo. Luiz Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Pedro Cardoso e Cláudia Abreu, atores que respeito muito e admiro, fazendo os revolucionários e sequestradores. Não me comovia. Não me atravessava, naquele momento.

O que é que é isto, Companheiro? filme de Bruno Barreto

Entretanto, num dia qualquer de 2003, aqui em São Paulo, fui ver Kamchatka, sem ler sinopse, tampouco resenhas. Pelo título achei que deveria ser algum filme passado em um cenário oriental. Totalmente desavisada e com minha filha, que deveria ter uns nove aninhos, me sentei, com pipocas em punho. À medida que o filme foi acontecendo, pela visão de um menino de nove anos, cujos pais eram militantes na ditadura da Argentina (1976-1983), fui me vendo, não na história em si, fui me identificando com o olhar de quem vivenciou aqui no Brasil aquela solidão. A falta de informação e o medo. As cenas se sucediam e uma, em especial, em que o menino corria atrás do carro dos pais, me remeteu a um dia, quando chegava da escola e vi um jipe do Exército levando mais uma vez o meu pai. E eu correndo gritando atrás do jipe na esperança de tentar deter mais uma vez o sumiço dele. O desespero do menino e aquela sensação de perda e de abandono me aterraram e despenquei num choro convulso e catártico dentro do Cine Lumière, no Itaim Bibi. Luzes se acenderam. Havia umas quinze pessoas. Fui até o toalete e lá continuei num pranto convulso que jorrava desapontamento, cicatrizes indeléveis de um tempo ladrão de alegria e sequestrador de ilusões. Era o disparador de tantas mágoas contidas. De tanto desconhecimento. De tanta dor. Ainda assim voltei para ver o filme e continuei soluçando durante toda a segunda projeção.

Minha filha, em sua ingenuidade, sacou: “Você tá assim porque se lembrou do vovô?”. Isso, sem nem sequer tê-lo conhecido, porque ele morrera num “acidente” de carro em 1971. E ela nasceu em 1993.

Kamchatka, de Marcelo Pineyro (Argentina, 2002)

O NÃO PERTENCIMENTO

Mas, e daí? Cresci achando que meu pai morreu num acidente trágico. Hoje, cinquenta anos após sua morte, alguns insistem na hipótese de não ter sido acidente. E me vejo às voltas com a Comissão da Verdade, procurando agulha em palheiro.

Mais um baque num corpo emocional que acredita ter superado essa questão, que, entretanto, volta sempre a incomodar. Reverencio a revolucionária que em mim habita, defendo-a e encaro a disciplina que ela exige para se realizar. Volto à juventude que clamava por um mundo ainda possível naquele realismo utópico, de “resistência”.

Vejo tantas e tantas reportagens, artigos, pontos de vista sobre estes 50 anos do golpe. Entretanto, tem gente da minha geração que passou por ela e não sabe que ela existiu.

Mais uma vez, este sentido de “não pertencimento” me acomete. Não se ouviam os gritos. Não se presenciavam os horrores. Tudo era minuciosamente camuflado dos sentidos dos homens comuns. Só rufavam os tambores para os “de esquerda”. Para os que se achavam inteirados de tudo e lutavam pela Liberdade. Liberdade, esta, questionável aos olhos da elite conservadora e do sectarismo da Igreja. Não me reconhecia e não me reconheço ainda nestes moldes de hipocrisia.

Hipocrisia, esta chaga que sangra e se arraiga cada vez mais nos modelos do establishment.

BASTA!

Sei lá se escrevo bem. Sei lá se estou sendo fiel aos mártires deste holocausto brasileiro, pelo valor universal que eles merecem por uma luta à altura de sua história.

Fiz protestos. Shows em universidades. Peças de teatro e festivais de música. Muito antes de ser uma universitária. Queria que ouvissem o grito da minha dor. Era uma graça que me concedia para me suprir da minha própria perda.

Continuo hoje tentando ser solidária a meus sentimentos e a minha verdade grita: “Chega!”.

Basta de se esconder debaixo da capa burguesa que corrompe tudo que toca. Destas amostras de barro que nos formatam, endurecem e paralisam em nome de uma vida melhor. Das etiquetas e do status que determinam nosso padrão de vida, como “bem ou malsucedido” pelas posses, pelos cargos, pelos títulos e pelas aparências.

Não me detenho mais em nome de nenhuma doutrina, partido, associação, seita ou facção. Sigo em meu próprio nome. Na verdade vou (me) esculpindo, dia após dia, ao encarar e transmutar minhas crenças provisórias.

Me interessa “tentar”, ao menos, ser coerente com o que penso e digo. Para não dar distorção e me transformar num ser humano amorfo, cuja legenda está fora de sincronismo. Dou lugar àquela criança impetuosa.

Não sou de direita. E me recuso a ser muro. Pendo, sim, para a esquerda. Porque é a esquerda que reconheço, através dos séculos de história de exploração do homem pelo homem, que vem gritar contra as injustiças sociais, contra os preconceitos, contra as discriminações de qualquer tipo, gênero, raça, fé e poder econômico.

Não me filiei a nenhum partido nem a nenhuma facção política, a fim de continuar livre para ir e vir. As associações e instituições refletem os preconceitos e estereótipos de seus dirigentes. E cada uma, a seu modo, tenta nos incutir seu modus vivendi, estendendo seus tentáculos para nos transformar em seres robóticos, acomodados numa forminha de gelo, a seu bel-prazer.

À LA GAUCHE

Volvendo à esquerda, quando ela cumpre seu papel revolucionário de ir contra a corrente, do abuso de poder e das ideias. Sejam elas quais forem. Principalmente se ela está a favor dos fracos e oprimidos, dando a eles condição de sair de sua triste condição e ensinando-os a lutar pelos seus direitos, qualificá-los pessoal, profissional e socialmente, mas sem desconhecer seus deveres.

Assim como há pobres soberbos, há ricos humildes. O homem imprime seu valor com ações e frutos. O subversivo é quem subverte o que oprime. Jesus era subversivo aos olhos do governo de Roma. Não havia outra solução a não ser eliminá-lo, por um motivo qualquer, como continuam fazendo com quem incomoda o poder vigente. Há casos em nossa própria história, como Tiradentes e mesmo o contraditório Calabar, que decidiu trocar de lado, a favor talvez de um protopovo brasileiro. E tantos outros por aí afora.

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Protesto contra a ditadura, 1968, Rio de Janeiro

DESANIVERSÁRIO

Nestes 57 anos de desaniversário do golpe de 64, só me lembro de que perdi meu pai tantas e tantas vezes. Ora pelo desconhecimento de onde ele estava. Ora pela própria militância. Ora pela Polícia Militar. Ora pelo Exército. E, finalmente, pela própria morte, em 1971.

E me desculpem os que se consideram “de direita”. Os que se consideram os certos e bem direcionados na vida. Os formadores de opinião. E mesmo alguns acadêmicos e intelectualizados da elite da esquerda. Muitos destes nem sequer sabem o que é militância.

Só me lembro do seu olhar, na hora de irmos embora, quando íamos visitá-lo, quando finalmente soubemos onde ele estava.

E do dia em que finalmente voltou para casa e seus amigos lhe perguntaram qual o sabor da Liberdade. Ele respondeu que ainda era cedo para descrever. Com seus braços amarelos de nicotina até o cotovelo, olheiras fundas, manchas roxas e afundamentos por todo o corpo esquelético. E uma tristeza milenar, que identifico nos olhos de Che Guevara, de Mandela, de Gandhi. Tais como os olhos de Jesus em suas tantas representações pictóricas. Imagens que vêm, vez por outra, atormentar meus eternos questionamentos.

Idealismo? Endeusamento? Sei lá… Meu pai era um pobre militante anônimo para as estrelas da luta armada em todo o país. Como centenas de outros hoje desaparecidos, sem paradeiro, sem história. Apenas um fantasma que nos assombra. Em nome de um passado sem glórias.

Mas, para mim, era, e é, um herói que me ensinou, pelo exemplo, que todos os homens são iguais, e também a não se curvar diante da ilusão de poder, seja ele qual for.

Imperfeito. Assumia suas incoerências. E ouvia com atenção minhas admoestações de menina e moça. Me dando ares de importância. Apoiava minha forma de realizar e me deixava livre para errar e acertar por minha própria conta. Parece que sabia que iria logo embora e procurou passar, desde cedo, livros e ensinamentos, em que me calco até hoje.

Simples. Direto. Uma oralidade ímpar. Carismático e amado por todos, ou quase. Naturalmente não pelos que se consideravam os baluartes da história dos supostos não pensantes. Ele, para estes, era a ovelha negra, a ser extirpada da sociedade. Mas o seu amor incondicional pelo ser humano me encantava e me comove até hoje. Guardo de 64, e dos anos de ditadura, marcas que dificilmente o tempo apagará. Assim como alfinetes esquecidos por algum alfaiate distraído. Mas não faço a apologia da necrofagia. Entretanto, apesar das infâmias praticadas em nome da lei e da ordem, nenhuma especulação escapará da trágica realidade da história.

Mas o amor que aprendi com este amigo, irmão, companheiro e só por acaso meu pai me acompanha, e me faz não desistir cada vez que encontro muralhas de incompreensão. E, resistindo à hipocrisia, me rendo à Liberdade.

Oh! Liberdade! Liberdade!

Que ela abra suas asas sobre nós.

E volvo a los nueve, doce, diecisiete, dieciocho, tantas vezes quantas forem necessárias, para louvar o presente de ter tido Almair Mendes Avellar como meu pai, meu país nesta “encadernação”.

Nota da autora:

Escrevi esta matéria em 2014.No Desaniversário de 50 anos do Golpe Militar de 1964.Este texto, despertou a atenção de vários jornalistas .Fui entrevistada pelo Jornalista Peu Robles para o site MEMÓRIAS DA DITADURA. ( Memórias da ditadura – Instituto Vladimir Herzog ) que percebeu minha agitação e me recomendou para a Clínica do Testemunho do Instituto de Projetos Terapêuticos -projeto de um grupo de Psicanalistas e Psicólogos que acolhiam em rodas de conversa e desabafos os ex- presos políticos , exilados e seus filhos e netos. Este projeto durou 2 anos e lá fui recebida com calor humano por todas e todos e pude falar com tranquilidade sobre o assunto depois de quase 45 anos de silenciamento.

Depois participei do projeto Margens Clínicas entre outros.

Posto aqui o registro da Oficina Retalhos de Memória da designer Camila Sipahi, que fazia parte de nosso grupo ,onde bordamos sobre fotos nossas e de nossos queridos e queridas redefinindo as memórias e reconstruindo os cacos da devastação que a Ditadura Militar deixou em nossos corpos, corações e mentes.

“Na Clínica do Testemunho, através dos Projetos Terapêuticos e memórias de dores revividas como resquícios da Ditadura Militar, alinhavamo-nos uns aos outros. Aprofundamos a busca por relações mais profundas, entremeadas por emoções recortadas e bordadas no processo.

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA SP

Este Estandarte está exposto no MEMORIAL DOS DIREITOS HUMANOS em Belo Horizonte,MG

#aMemóriaSIM #aVerdadeSIM #aJustiçaSIM

HOJE

Estamos em 2021.A pandemia do Covid 19 e suas mutações ,dispara como um raio sob o descontrole de um governo eleito pelo povo, pós novo golpe em 2016.

Aos berros de uma evocação à família e à igreja, destituíram a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.

E,hoje, com mais de 300 mil brasileiros mortos pelo Covid, e outros tantos milhares internados em estado grave,e outros à espera de insumos, medicamentos, tratamentos ,leitos e vacinas, o nosso desgovernante tenta desesperadamente se manter no poder, desestabilizando as instituições , a economia, a educação ,as ciências e as artes.

Uma arrogância cega que deixa um rastro de dor e miséria, e, ainda assim, encontra ressonância em seus vassalos, com os quais, articula constantemente perfídias contra o povo brasileiro.

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CAÇADORA DE MIM Shellah Avellar

Me agito na cadeira.Ouço passos.O suor me inunda.Taquicardia.Respiração ofegante.Vou desfalecendo.

É ele! E vem se aproximando rapidamente. O monstro da Lagoa: o Pânico!

Será mais um ataque?Uma síndrome?Um medo de viver?

De viver? Ou de morrer em vida, sem motivo,sem perspectiva e sem esperança?

O caixa tilinta os alarmes das contas a pagar que se acumulam pelas escrivaninhas e estantes a me lembrar da dura realidade.

Os inúmeros certificados , apostilas de cursos ,cartas de referências ,seminários,especializações se empilham empoeirados nas pastas coloridas, modernas e organizadas de meu home-office.

Projetos engavetados descansam irrequietos , à espera de ação imediata.

Os prêmios conquistados jazem esquecidos pelas prateleiras de uma vida de workaholic ,perfeccionista e dedicada.

Num impulso ,contrato os  serviços de agências de emprego.

Os head-hunters me confundem .Meu curriculum vitae é excelente.”Um nível de excelência ímpar “,dizem.

Mas,para os empregadores, é muita experiência.Precisamos de alguém mais novo.Que precisa aprender conosco,”sem vícios”.

Ou ,”sua experiência multifacetada é altamente interessante ,mas precisamos de alguém mais técnico.”

Os jovens entrevistadores se pegam  sonolentos  com o meu “português”,sem expressões idiomáticas ou sem “a nível de “.

Ou simplesmente não retornam mais, assim como “Conceição,se subiu,ninguém sabe..ninguém viu…”

O desabrochar do individualismo reafirma o perfil do novo trabalhador: autônomo, flexível, capaz, competitivo, criativo, agressivo, qualificado e empregável. Estas habilidades o qualificam para a demanda do mercado que procura a excelência e saúde perfeita. Estar “apto” significa responsabilizar os trabalhadores pela formação/qualificação e culpá-los pelo desemprego, aumento da pobreza urbana e miséria, e impondo aos mesmos , a origem do verdadeiro significado de trabalho = tripalium, sinônimo de tortura.

A retirada mensal vai diminuindo a cada ano. Creio estar apta para a faxina.A começar pela limpeza da minha própria vida:Amassar os diplomas .Balançar o bum –bum nas baladas de cada dia.. Tomar energéticos.Me embriagar com “ices”.Colocar silicones. Fazer aplicações  de botox.Fazer uma tatoo tribal.

Malhar diariamente com o mais novo tênis de impacto. Frequentar os bares e restaurantes da moda.Fazer escovas progressivas.Luzes californianas.Unhas  multicoloridas.Rodar poraí num carro importado.Portar relógios rolex e cheirar aromas de griffe .

Fazer psicoterapia de grupo assistindo a reality-shows para reaprender a viver em sociedade  e trabalhar em equipe.

E “estar me especializando” (ou me gerundizando)em gestão de qualquer coisa. Ser politicamente correta.Me familiarizar com os dialetos do mercado.Entrar na “vibe” e destilar  veneno nos corredores .Puxar tapetes .Engrossar a agenda,fazendo “contatos imediatos”.Pegar BVs de clientes incautos.Adotar um sorriso de plástico e hastear para sempre a bandeira da hipocrisia.

Amigos me cobram o ânimo de ontem. A vitalidade de ante-ontem.Os sonhos abortados.A crença positiva de que tudo vai mudar.

No entanto, um suave relaxamento se apodera de mim e uma voz lá de dentro me desafia: ”Já tá na hora de programar um novo fim e acionar um recomeço digno de sua capacidade e liderança.”

Há  consciências que precisam ser abertas e que clamam por minha mão firme e passos resolutos.

Caminho em direção à porta com a convicção de que o mundo precisa de mim. Arrogância? Pretensão? Sei lá!

Uma força surda me impulsiona pra frente. Me faz saltar da cadeira.Corro para um parque próximo à procura de ar puro para me oxigenar.

Não hesito.Sigo em frente  com a certeza  de que cabe a mim ,só a mim,me resgatar.

O grito de guerra que escapa de meu peito ,queima as marcas da insatisfação  e acende as fagulhas da fé interna.

Por que ir ?  Pra onde ir? Como ir? Quando  ir?

Meus passos me levam a uma clareira. Olho para um céu límpido ,e, quero o chão. Mas, me deixo penetrar pela profundidade do éter que me engole e me transporta para além de mim.

Os redemoinhos das brancas nuvens me envolvem .Me deixo cair na maciez daquele colchão de nimbos,que anunciam um tempo bom..

Sei que tudo isso é passageiro. Talvez uma maneira de me alienar, me anestesiar do amargo “aqui e agora”.Não importa.Vou em frente!

Salto sem para- quedas.E caio em pé,como os felinos em suas sete vidas.Creio já ter gasto algumas ,nas agruras da caminhada um tanto extenuante.

Ainda assim,claudicando,trôpega,sigo em frente.

Não sinto mais os meus pés.Levito.Vôo.

Alcanço de novo as alturas  com a consciência de que sou responsável pela abertura de minhas asas rumo ao “presente”.

A urgência liberta a minha força e desata minha esperança  intrincada em  nós de marinheiro,tecidos nas dores das investidas passadas.

Suspeito de mim mesma.Será um sonho?Vertigem?

Não importa.Vou em frente!

Caminho.Respiro.Penso.Reflito.

Entretanto meus pensamentos não se fixam em nada. As imagens em flashes absurdos se sobrepõem ,à minha revelia,desbravando os porões de meu inconsciente em busca de soluções desesperadas.

Lá no fundo do meu poço encontro energias para reagir.

E,num salto,me recomponho.Aceito a dor e abraçada a ela ,busco as respostas..Uma voz dentro de minha cabeça insiste:

O sucesso é ilusório.O caminho é a luz.A viagem é o resultado.

O silêncio é o grito de amor por mim mesma ,que redesperta o canto dos pássaros pelas manhãs incontestes da natureza que derrama cheiros e brilhos que me remetem aos risos da minha infância que jamais se perdem.

O fio de Ariadne,que cada um de nós tece, é um tapete de pétalas  que vão colorindo nossos jardins pessoais.

E,vou em frente, deixando cair as pérolas que facilitam a “passagem “ para os incrédulos.

As leis da grande luz que espera pacientemente que acionemos o interruptor interno para religar a usina da anima, do moto- contínuo que é a pulsação dinâmica dos átomos e das células da criação.

Sou pólen,poeira e luz.Me entrego a meu destino com a certeza de ser instrumento da paz em meu entorno e dentro de mim.

Caçadora de mim, tento uma vez mais.

O OVO PRIMORDIAL shellAHAvellar

Para Camilla Wottoon Villela e sua avó Tércia

Olhar profundo. Fala mansa e sensata. Pensamento bem articulado. Camilla com dois elles – estilo fashion no último – é pura arte na vitrine de sua própria aparência.

Mãos bem cuidadas. Esmalte laranja reforçam a vontade de se reacender perpetuamente ,nas memórias que evocam sua Vovó Tércia.

Ou Vó Téte, mulher guerreira, que rodava as saias longas e coloridas na roda de uma vida de exemplos de fortaleza e ação.

Quebrando as correntes da união conjugal, assumiu os rebentos da procriação.

Separou-se de Alan Wooton, cuja herança se limitou aos temperos ingleses misturados ao sabor da sua cozinha pernambucana, e ao som de Frank Sinatra.

rouge dos cajus e caquis povoavam a rotina vegetariana de Vó Téte, que à imagem dos índios ,adormecia quando escurecia e acordava quando o sol nascia.

O rádio anunciava seu despertar: – “VamoEmbora! VamoEmbora. Tá na hora!” Indício de que era  hora de abraçar o dia com todas as suas surpresas.

A ruptura do casamento, levou Vó Tércia para  o sítio em Lourenço da Serra, que povoa o imaginário de seus netos, até hoje com insights de alegria e gosto de fruta madura.

A convivência diária com os primos, transmutados em irmãos, pela condição de filha única de Camilla, traz o conforto  da companhia, a proteção e o amparo inexpugnável de uma fraternidade do próprio sangue.

Essas lembranças agasalhadas pelo manto de incorruptibilidade de Vovó Tércia, erigidas nos natais em família, assentam Camilla nos vínculos que permeiam a estrutura da mulher forte e decidida que vislumbro hoje.

A combinação “estilosa” de sua indumentária, com certeza é herança de vó Téte, que mergulhava os netos no sensível e agudo observar dos ciclos do tempo.

A militância política e engajada da avó em causas de respeito às mulheres e à Mata Atlântica, remontam ao Mito de Eva- o útero que gera com responsabilidade e acompnaha a continuidade, com perícia de Mestra, quase deusa para Camilla.

A foto em escadinha etária com os primos e a avó nos almoços dos 25 de dezembro, ao longo de sua história, ao sabor do strogonoff, batata palha e coca-cola, é o ponto vital de sua memória afetiva.

Como no princípio da Escada de Jacó, em sua busca pela iluminação, Camilla resgata nos recônditos da alma, o farol que ilumina sua estrada, rumo a sua própria superação.

A imagem de Vovó Tércia, é o ápice desta busca por si mesma, o ovo primordial.

ELLA Shellah Avellar

Ella era a única mulher ali naquela bizarra e nada gentil reunião.
Todos se levantaram e a deixaram só.
Suspirou aliviada. Era o início de uma vitória.
Há alguns bons anos tentara introduzir seu ponto de vista naquela comunidade.
Mas aqueles aldeões carregavam estereótipos e preconceitos alimentados através de séculos de patriarcado, em relação a qualquer figura feminina.
As expressões endurecidas. As cicatrizes do vento que sulcavam as faces dos lavradores eram iluminadas pela lua, que, intrusa, teimava em acender aqueles olhos desesperançados.
O cheiro da terra molhada impregnava o casebre. A fogueira, lá fora, ardia seus carvões estertorosos após a chuva.
Seu apelo por liberdade fora ouvido. Isto é o que importava.
Seus olhos disparavam, errantes, maravilhados. Ella viera para ser feliz, e assim já se
sentia.
A magia de poder se exercer como mulher integral em pleno século XVIII.
Soltar seus cabelos. Esvoaçar suas saias. Correr célere pelos campos, sem horário para voltar.
Ninguém a esperava. Nenhum marido retrógrado. Nem pai. Nem irmão.
Mas a certeza de que era dona de seu destino. De poder ir e vir, quando lhe aprouvesse. Conquistar o direito de ler seus livros em paz e exercer o ofício de escrever.
Convenceu-os de que, apesar de não chegar a ter sucesso deste jeito, falharia em qualquer outro.
Era a arte se impondo aos brutos da aldeia.
Todos pararam para ouvir seu manifesto de dor, em que versava:
“O trabalho árduo me oprime.
Mas liberta em mim a poesia.
Que insiste em brotar
De minhas mãos calosas,
E de meu coração de esterco.
Grito.
Semeio flores
Na aridez do mundo dos homens.”

Jane Austen

Texto em homenagem à escritora inglesa Jane Austen, que nasceu em 16 de dezembro de 1775. Austen é autora de romances clássicos da literatura mundial como Razão e SentimentoOrgulho e PreconceitoPersuasão e Emma. Austen faleceu em 18 de julho de 1817, aos 41 anos.

Conto publicado na Antologia PALAVRAS ABRAÇADAS, Volume 3, 2016 da Editora Scortecci.

Literatura – Blog do Menalton – Literatura: CONTOS CORRENTES

ELLA | Blog da Limiar (editoralimiar.blogspot.com)

PADECENDO NO PARAÍSO Shellah Avellar

Ilustração: Shellah Avellar (acrílico sobre tela)

Depois de exatamente 21 anos e 9 meses, ainda me pergunto: que sentimento é este, que, por vezes, libera a endorfina, noutras, nos leva à loucura?

Quem é esta persona plural que está ali e não se mostra, delineando tal aura inquietante?

Ubiquidade, Onisciência e Onipotência são seus atributos.

Carrega sobre os ombros as grandes decisões táticas e os planos temporais, em que cada episódio ou fase destes filhos de Deus são situados.

Observadora glacial e precisa, se confunde com o sujeito amado. Ilumina e obscurece as condutas dos elementos nos instantes oportunos.

Lava, limpa e passa.

Embala. Agasalha. E alimenta.

Trabalha! Trabalha! Trabalha!

Atrapalha e se atrapalha.

Às vezes se ausenta, para se tornar presente.

Estouvada. Indispensável. Distraída.

Peca quase sempre pela intrusão, quando as expansões líricas dão lugar à formatação matemática da natureza humana.

Esculpe parâmetros morais, políticos, religiosos e metafísicos, dentro dos quais se movimentam os homens e mulheres do planeta.

Vai batendo eternamente este bolo exótico, combinando ingredientes, misturando receitas, reinventando a alquimia e estruturando o mundo das ideias e das crenças a partir dos quais se julga e realiza o bem e o mal.

Acerta e se equivoca. É vil e nobre. Comum e insólita. Conformista e rebelde.

Arranca suas raízes, a fórceps, “cesariando” ou naturalmente, do virtual para o real.

Faz a ambiguidade virar certeza. E a certeza se torna dúvida num átimo de segundo.

Que é esta entidade que baixa quando nos percebemos grávidas?

Estes nove meses nos põem em contato com uma “humanidade abstrata”, depurada do Homem propriamente dito?

Por que experimentamos sensações que de outro modo seriam absolutamente impossíveis?

Fariam até Descartes e Spinoza concordarem num único ponto: tudo que acontece no corpo produz-se igualmente na alma. Ou produz nela alguma coisa de irreal? Uma ideia? Um sentido?

Produz, sim! Esta semente. Esse ser semelhante a nós. E tão dessemelhante! Um cataclisma de átomos em vias de se projetar para fora, como um surto de esperança num futuro que ainda não existe.

Quem é que neste momento único toma forma, num cenário de solenidade e abstração?

Agonia e êxtase se misturam e gritam: Mãe!

(14) PADECENDO NO PARAÍSO : Triste | Facebook

O ESPELHO Shellah Avellar

– Quem é você? –

Ela para. Olha fixamente o espelho à sua frente.

Fria e inconteste, aquela voz ecoava em sua cabeça, chacoalhando-a impunemente em um tom devorador de lobo faminto.

Na velocidade de um raio, que sem deixar dúvidas, vai registrando cada ricto de dor passada, drama alheio de sua loucura, sulcada nas íngremes camadas de uma vida.

Desbrava as suas entranhas com a navalha afiada e impiedosa da realidade.

Não se esquece dos altos e baixos, nem do fog que acinzenta as cores que lhe foram sequestradas.

Das tempestades que lhe açoitaram as costas e lhe fizeram perder a postura empertigada.

Do suor que explodia, irrigando os poros e drenando o pânico.

Ela não pestaneja. Enfrenta o espelho.

Responde:

– “Não sou mais a artista. Sou a minha própria obra de arte. Sou o frêmito da minha embriaguez.”

Mas, o intrépido espelho, revela as angústias dos sonhos não realizados.

Questiona o pescoço, já não tão viçoso como outrora. A pele flácida do colo. Um tecido que o ferro do tempo não alisa. Testemunha dos anos desleixados nos cuidados consigo mesma. Um papel impossível de rasgar

Os sinais que riscam sua face. Rios secos de um canyon escarpado pelas perversidades dos seres.Humanos? E pelas suas pequenas e inconfessáveis mesquinharias.

As manchas, companheiras dos sóis abrasadores da areia que abrigava suas costas sedentas de calor.

O olhar perdido. E o desespero da espera por um final. Feliz?

Ele chega por trás. Fica imóvel observando este solilóquio. Cúmplice permanece calado. Observador privilegiado deste momento mágico.

Imperturbável, ela continua a velar atentamente por aquela que nunca foi, e pela que é.

Uma rajada de vento bate levemente a janela. A lua ,grávida ,se insinua. E o gato, Noir, salta no quarto.

Mas, nada. Ambos continuam impassíveis.

Noir, com suas duas esmeraldas cintilantes perscruta os dois. Bamboleia por entre suas pernas, como uma serpente que aprova a escuridão e as profundezas da tensão.

Depois, se acomoda e se enrosca gostosamente num sofá de veludo negro que parece engoli-lo.

Nada parece se mover neste espaço sem lugar.

Há num como no outro aquilo que não foi vivenciado. Como uma sombra obscura de uma vida roubada.

Entretanto há a pulsação invisível. Do trágico. Do avesso.

– “Tola. Há qualquer coisa que ficou por se expressar. E se perdeu nos labirintos da rotina”. O espelho sussurra.

Ele, porém, descansa a mão sobre seu ombro direito. Abre com a outra mão a porta do armário. E se fixa no espelho que reflete o dela.

Ambos ficam assim, por um tempo.

Seus olhos se encontram. Uma conversa muda.

O filme de suas vidas passando nos seus olhos.

Por um instante parecem sorrir sem ao menos entreabrir os lábios. No entanto, este segundo, arrefece o mundo de suas deformidades.

Esta cerimônia sela uma parceria.

Não há flores. Festa. Anel de Brilhante.

Apenas um mútuo acordo de caminhar juntos.

O mergulho no escuro de um futuro incerto. Como sempre foi até aqui. Durante anos. Quantos??? Não importa.

Aquela intensidade é uma força que colabora com o todo.

Ela deixa escorrer uma lágrima.

Ele a enlaça suavemente. Para que aquela emoção aguda no canto das pálpebras cumpra seu curso.

Seu peignoir de seda escorre suavemente até o chão. Percorre cada reentrância e seus relevos lentamente.

Leva com ele todas as máscaras que a aprisionavam com seus laços neuróticos.

Da terra que absorve seus terrores. Da água que lava as culpas. Do fogo que lambe suas decepções e ferve as paixões. Do metal que rasga o pesar das perdas. Do grito que liberta as mentiras escondidas. Que eliminam a ilusão de solidão, com a certeza de que tudo é risco e único. Que abrem as portas dos apegos e os deixa alçar voo.

Ele espera que este banho de seda a refresque de suas nefastas nuvens.

A lua invade a janela e derrama prata em seu dorso nu. Sopra a poeira dos erros e acertos, da dimensão fatídica e concreta dos caminhos de cada um.

Os pelos dela se arrepiam sob seus dedos.

Ela se vira e o abraça.

E, assim permanecem. Até que a morte os imante no sonho e os liberte do silêncio.

O espelho murmura: “A verdade só encontra semelhança em mim, seu próprio espelho. E só a loucura pode libertá-la. O louco sou eu. Você. E o cara aí do seu lado.”

Noir abre os olhos verdes brilhantes e logo os fecha preguiçosamente.

Ilustração:Shellah Avellar O Gato e a Lua