Para Doloris (Elizabeth Goth) e Cassiana (Victoria Rupp)
photo@ShellahAvellar à esquerda Doloris e à direita Cassiana
Conheci Irmã Cassiana, aos 05 anos de idade, quando adentrei pela primeira vez o Colégio Medianeira, hoje Instituto Medianeira, administrado pela Fundação Bonlanden de Freiras Franciscanas alemãs.
Na verdade, quem me recebeu foi a Irmã Alcântara que dizia eu ser muito nova para entrar na Escola. Aí apareceu a Irmã Cassiana, e me levando pela mão, com seu doce jeitinho, me apresentou à sala onde eu seria alfabetizada, por seu português impecável, e ao colégio onde vivi grande parte de minha infância e adolescência como aluna e, posteriormente, como professora.
A Irmã Doloris entrou na minha vida mais tarde, quando na sua aula de Ciências, me contrapus, já naquela época, a conceitos ultrapassados sobre Darwin e passei a defendê-lo sem nunca ter lido absolutamente nada sobre ele. Aliás, continuo fazendo isto, sempre com os que vão na contramão da história e, em seguindo seu coração, atingem seus objetivos e um reconhecimento controverso que atravessa as civilizações.
Até os 7 anos de idade, estudávamos o catecismo como matéria e decoreba. A partir daí, comecei a contestar os ensinamentos, ao insistir que Deus era Energia, Consciência Cósmica e não aquele velhinho de barbas longas e dedo acusador, exigindo subserviência absoluta.
Isto assustava as freirinhas, que ficavam de cabelo em pé, quando eu levantava a mão para argumentar. E deixava minha turma, de saco cheio de tanto papo- cabeça, durante as monótonas aulas de Religião.
Minha mãe, quando lá estudou, pegou os tempos de palmatória e quarto escuro de castigos.
Na minha época, vários destes hábitos monstruosos, já tinham sido abolidos.
Ainda bem, porque seria interessante, provocar uma rebelião contra estes maus tratos dinossáuricos.
Sempre fui muito ativa em promover eventos paralelos em meu percurso na Escola, para chacoalhar alunos e professores e movimentar a galera em prol de alguma causa ou estimular talentos.
Mas, nosso relacionamento se aprofundou, depois de eu ter sido convidada pela tempestade gaúcha Irmã Judita (Elisabetha Pasa-in memoriam),a lecionar na Escola, logo após me formar no Ensino Médio, por conta do falecimento do meu pai em um trágico acidente de automóvel.A Judita me resgatou, para me distrair da dor e me manter ocupada com o desafio de assumir as aulas de Matemática, Inglês, (mais tarde, propus Oficinas de Expressão Corporal e Artes Cênicas, observando os talentos e potencialidades durante as aulas), para Ginásio e Ensino Médio o que provocou muito burburinho e ruídos entre ex-colegas de turma, seus pais e alguns professores. Mas, provocar polêmicas pelo simples fato de existir,” faz parte do meu show.” E, isto, merece uma outra crônica.
Cassiana e Doloris por serem de descendência alemã, gostavam de comemorar com cerveja nossas vitórias ou por simples confraternização. Sempre estivemos juntas no Estado do Rio e em São Paulo, quando de suas vindas por aqui e nunca deixamos de ter contato.
Minha filha, quando pequena, as chamava de avós.
Quando eu estava por lá, em visita, elas me convidavam para assistir A NOVIÇA REBELDE, com elas, no Domingo, porque diziam que a atriz encarnava ipsis literis a minha personalidade. Foi a sua forma de homenagear meu jeito indomável e revolucionário. E, isso não tem preço.
Cassiana era doce, intuitiva, artista e disciplinada.
Doloris era instável e bagunceira, mas tinha mente afiada para a tecnologia e olho clínico para os grandes avanços. E as novidades para a Escola sempre vinham de sua pesquisa por modernidades e aquisição de equipamentos e reformas nos espaços da escola.
Ambas tinham talento para a música, um enorme coração, e um amor incondicional pelos animais e plantas.
Doloris se deixava enganar muitas vezes por oportunistas de várias ordens e tinha dificuldade de se impor. Cassiana era assertiva. Botava logo a ordem no galinheiro.
Uma completava a outra e desenvolveram uma amizade e sororidade impecáveis ao longo da vida, até o fim.
O pós guerra na Alemanha levou muitas famílias a optar por deixar suas filhas nas Instituições religiosas onde tivessem casa e comida. Isto garantiu a segurança das mocinhas, mas, na verdade, obrigou muitas delas a renunciar a uma vida de outras escolhas que as fizessem se exercer plenamente como mulheres livres.
Fiz o projeto arquitetônico do Parque Infantil e do Ginásio de Esportes da Escola e além de outros projetos, organizei o evento dos 50 anos do Instituto Medianeira no Ginásio do BTC a convite de Doloris, com apresentação de várias coreografias e performances, por mim desenhadas. Executei Festivais de Música e desenvolvi dois grupos de artes cênicas, que me trouxeram muitas emoções, e amizades que cultivo até hoje.
A direção mandou a Doloris para a Alemanha e o evento que era em sua homenagem transcorreu sem sua presença.
Anos mais tarde, quando eu já estava em São Paulo, ela voltou e veio me convidar para dirigir as obras dos dois projetos de Arquitetura. Foi uma loucura, porque eu estava a mil por aqui. Mas, dei conta do recado.
A segunda parte da construção do ginásio deleguei a um arquiteto de Nova Iguaçu.
Minha única condição foi que o Parque Infantil levasse o nome de Cassiana e o Ginásio, o da Doloris. E, assim é, até hoje. Missão cumprida.
Fui visitar a Doloris, quando fez uma cirurgia de câncer de mama e me disseram para não me decepcionar porque ela não estava reconhecendo ninguém.
Entrei no quarto. Ela estava dormindo profundamente. Peguei suas mãos. Ela abriu os olhos e me disse:-Você achou que eu não ia te reconhecer? Você é inesquecível.
Saí de lá aos prantos. Caminhei pelos corredores, salas, e dependências daquela casa que guarda a marca do meu desenvolvimento educacional e crítico. A consciência do efêmero tomou conta de mim, e fui colhendo as pétalas de uma voz que lá deixei, ecoando por alegria, justiça e muita camaradagem. Um lugar de fala para várias manifestações artísticas e conscientização política e de preservação do meio-ambiente e prática de gentilezas.
Doloris se foi. Alguns meses depois, se foi Cassiana. Unidas, estrelas inconsoláveis que eram, não puderam ficar muito tempo, uma sem a outra. O Yin e O Yang corriam em suas veias germânicas e se locupletavam.
Não pude estar em seus velórios e ainda não tive coragem de visitar o Colégio sem as duas por lá. Mas, a gratidão, a lembrança e o carinho por estas duas potências fendidas, que se reinventaram para driblar seus grilhões e resgatar sua dignidade humana, segue comigo, coabitando o enigma dos corpos femininos que as religiões “endorsam”.
Reverbera em mim, o canto gregoriano das noviças, a neblina que caía como um véu de noiva do seu casamento com deus e o cheiro de pão caseiro do Convento de Itapecerica da Serra, que inundavam nossos sentidos nos inesquecíveis cafés da manhã e invadiam meus olhos em torrentes de luz e faziam brotar rios de lágrimas em meu santuário interno.
A memória destas duas freirinhas, que verdadeiramente conheciam o meu “caráter” me vêm como insights, cada vez que tentam me transformar numa “caricatura de mim mesma”, ou quando me torno cega e fragilizada diante das injustiças e barbáries e, resgato por fim, os meus mitos, até que a arte que em mim habita, me reconcilie com eles.
photo@ShellahAvellar Irmã Cassiana , Irmã Doloris e Irmã Maria do Instituto Medianeira, quando levei minha bebê recém-nascida para conhecer a minha escola do coração.1993