IRMÃS ENTRE SI shellAHAvellar

Para Doloris (Elizabeth Goth) e Cassiana (Victoria Rupp)

photo@ShellahAvellar à esquerda Doloris e à direita Cassiana

Conheci Irmã Cassiana, aos 05 anos de idade, quando adentrei pela primeira vez o Colégio Medianeira, hoje Instituto Medianeira, administrado pela Fundação Bonlanden de Freiras Franciscanas alemãs.

Na verdade, quem me recebeu foi a Irmã Alcântara que dizia eu ser muito nova para entrar na Escola. Aí apareceu a Irmã Cassiana, e me levando pela mão, com seu doce jeitinho, me apresentou à sala onde eu seria alfabetizada, por seu português impecável, e ao colégio onde vivi grande parte de minha infância e adolescência como aluna e, posteriormente, como professora.

A Irmã Doloris entrou na minha vida mais tarde, quando na sua aula de Ciências, me contrapus, já naquela época, a conceitos ultrapassados sobre Darwin e passei a defendê-lo sem nunca ter lido absolutamente nada sobre ele. Aliás, continuo fazendo isto, sempre com os que vão na contramão da história e, em seguindo seu coração, atingem seus objetivos e um reconhecimento controverso que atravessa as civilizações.

Até os 7 anos de idade, estudávamos o catecismo como matéria e decoreba. A partir daí, comecei a contestar os ensinamentos, ao insistir que Deus era Energia, Consciência Cósmica e não aquele velhinho de barbas longas e dedo acusador, exigindo subserviência absoluta.

Isto assustava as freirinhas, que ficavam de cabelo em pé, quando eu levantava a mão para argumentar. E deixava minha turma, de saco cheio de tanto papo- cabeça, durante as monótonas aulas de Religião.

Minha mãe, quando lá estudou, pegou os tempos de palmatória e quarto escuro de castigos.

Na minha época, vários destes hábitos monstruosos, já tinham sido abolidos.

Ainda bem, porque seria interessante, provocar uma rebelião contra estes maus tratos dinossáuricos.

Sempre fui muito ativa em promover eventos paralelos em meu percurso na Escola, para chacoalhar alunos e professores e movimentar a galera em prol de alguma causa ou estimular talentos.

Mas, nosso relacionamento se aprofundou, depois de eu ter sido convidada pela tempestade gaúcha Irmã Judita (Elisabetha Pasa-in memoriam),a lecionar na Escola, logo após me formar no Ensino Médio, por conta do falecimento do meu pai em um trágico acidente de automóvel.A Judita me resgatou, para me distrair da dor e me manter ocupada com o desafio de assumir as aulas de Matemática, Inglês, (mais tarde, propus Oficinas de Expressão Corporal e Artes Cênicas, observando os talentos e potencialidades durante as aulas), para Ginásio e Ensino Médio  o que provocou muito burburinho e ruídos entre ex-colegas de turma, seus pais  e alguns professores. Mas, provocar polêmicas pelo simples fato de existir,” faz parte do meu show.” E, isto, merece uma outra crônica.

Cassiana e Doloris por serem de descendência alemã, gostavam de comemorar com cerveja nossas vitórias ou por simples confraternização. Sempre estivemos juntas no Estado do Rio e em São Paulo, quando de suas vindas por aqui e nunca deixamos de ter contato.

Minha filha, quando pequena, as chamava de avós.

Quando eu estava por lá, em visita, elas me convidavam para assistir A NOVIÇA REBELDE, com elas, no Domingo, porque diziam que a atriz encarnava ipsis literis a minha personalidade. Foi a sua forma de homenagear meu jeito indomável e revolucionário. E, isso não tem preço.

Cassiana era doce, intuitiva, artista e disciplinada.

Doloris era instável e bagunceira, mas tinha mente afiada para a tecnologia e olho clínico para os grandes avanços. E as novidades para a Escola sempre vinham de sua pesquisa por modernidades e aquisição de equipamentos e reformas nos espaços da escola.

Ambas tinham talento para a música, um enorme coração, e um amor incondicional pelos animais e plantas.

Doloris se deixava enganar muitas vezes por oportunistas de várias ordens e tinha dificuldade de se impor. Cassiana era assertiva. Botava logo a ordem no galinheiro.

Uma completava a outra e desenvolveram uma amizade e sororidade impecáveis ao longo da vida, até o fim.

O pós guerra na Alemanha levou muitas famílias a optar por deixar suas filhas nas Instituições religiosas onde tivessem casa e comida. Isto garantiu a segurança das mocinhas, mas, na verdade, obrigou muitas delas a renunciar a uma vida de outras escolhas que as fizessem se exercer plenamente como mulheres livres.

Fiz o projeto arquitetônico do Parque Infantil e do Ginásio de Esportes da Escola e além de outros projetos, organizei o evento dos 50 anos do Instituto Medianeira no Ginásio do BTC a convite de Doloris, com apresentação de várias coreografias e performances, por mim desenhadas. Executei Festivais de Música e desenvolvi  dois grupos de artes cênicas, que me trouxeram muitas emoções, e  amizades que cultivo até hoje.

A direção mandou a Doloris para a Alemanha e o evento que era em sua homenagem transcorreu sem sua presença.

Anos mais tarde, quando eu já estava em São Paulo, ela voltou e veio me convidar para dirigir as  obras dos dois projetos de Arquitetura. Foi uma loucura, porque eu estava a mil por aqui. Mas, dei conta do recado.

A segunda parte da construção do ginásio deleguei a um arquiteto de Nova Iguaçu.

Minha única condição foi que o Parque Infantil levasse o nome de Cassiana e o Ginásio, o da Doloris. E, assim é, até hoje. Missão cumprida.

Fui visitar a Doloris, quando fez uma cirurgia de câncer de mama e me disseram para não me decepcionar porque ela não estava reconhecendo ninguém.

Entrei no quarto. Ela estava dormindo profundamente. Peguei suas mãos. Ela abriu os olhos e me disse:-Você achou que eu não ia te reconhecer? Você é inesquecível.

Saí de lá aos prantos. Caminhei pelos corredores, salas, e dependências daquela casa que guarda a marca do meu desenvolvimento educacional e crítico. A consciência do efêmero tomou conta de mim, e fui colhendo as pétalas de uma voz que lá deixei, ecoando por alegria, justiça e muita camaradagem. Um lugar de fala para várias manifestações artísticas e conscientização política e de preservação do meio-ambiente e prática de gentilezas.

Doloris se foi. Alguns meses depois, se foi Cassiana. Unidas, estrelas inconsoláveis que eram, não puderam ficar muito tempo, uma sem a outra. O Yin e O Yang  corriam em suas veias germânicas e se locupletavam.

Não pude estar em seus velórios e ainda não tive coragem de visitar o Colégio sem as duas por lá. Mas, a gratidão, a lembrança e o carinho por estas duas potências fendidas, que se reinventaram para driblar seus grilhões e resgatar sua dignidade humana, segue comigo, coabitando o enigma dos corpos femininos que as religiões “endorsam”.

Reverbera em mim, o canto gregoriano das noviças, a neblina que caía como um véu de noiva do seu casamento com deus e o cheiro de pão caseiro do Convento de Itapecerica da Serra, que inundavam nossos sentidos nos inesquecíveis cafés da manhã e invadiam meus olhos em torrentes de luz e faziam brotar rios de lágrimas em meu santuário interno.

A memória destas duas freirinhas, que verdadeiramente conheciam o meu “caráter” me vêm como insights, cada vez que tentam me transformar numa “caricatura de mim mesma”, ou quando me torno cega e fragilizada diante das injustiças e barbáries e, resgato por fim, os meus mitos, até que a arte que em mim habita, me reconcilie com eles.

photo@ShellahAvellar Irmã Cassiana , Irmã Doloris e Irmã Maria do Instituto Medianeira, quando levei minha bebê recém-nascida para conhecer a minha escola do coração.1993

DE PRODUTORES DE ESPERMA OU QUE PORRA É ESTA? Shellah Avellar

Os testículos são glândulas sexuais masculinas, localizadas no interior da bolsa escrotal.

São formados por milhares de tubos finos e enovelados, chamados túbulos seminíferos,

onde acontece a produção de espermatozoides,

processo conhecido como espermatogênese.

No amor quem primeiro se cura, é sempre o mais bem curado. Rochefoucauld

A ilusão só tem futuro, quando o nexo oscila entre o êxtase e o transe.

É lamentável saber que os mortais ainda se apegam a esta definição de vida, que traz o gôzo como inimigo da cautela e o coloca à mercê da conquista da felicidade, segundo os critérios da tosca sociedade, que rotula,julga e condena.

Estes machos, são potências tensas e rachadas, angustiadas pela fantasia de dominar o sexo e de se submeter a ele.

A impressão que se tem de alguns seres do sexo masculino e que se assumem como tal, e pensam que querer desvendar uma mulher é sempre uma forma de possuí-la ou de se vingar dela.

E outros,a designam por coisa,que sob a aparência de humana, só carrega em seu íntimo o desejo de procriar, e o sacia, se utilizando dos machos.

Mas, há algumas que se recusam a ser somente um corpo. Onde o macho deixa sua “rubrica”.

Embrigados de irresponsabilidade, saem poraí despejando seu esperma em vaginas desavisadas e ávidas de amor.

E depois de vencidas pela aparente delícia, se contorcem para dar a luz e sustentar sozinhas seus frutos e nos subsolos da vida, se encarceram no papel de mães, em carreiras-solo vestidas de invisibilidade e renúncia, para sobreviver e prover e amar incondicionalmente seus filhotes.

E, em nome deste amor, elegem estes bebês como déspotas e se ajoelham a servi-los indefinidamente.

Mas, depois que o trabalho árduo está completo, casa ,comida e roupa lavada, educação e princípios, meios e fins, os produtores de esperma reaparecem como heróis e cheios de arrependimento, reivindicam a biografia com ares de Senhores de Engenho, autenticam as fábulas do patriarcado e a impostura de uma ficção verdadeira.

E ,revestidos da divindade machista, validada pelo DNA , arrastam os bebês já crescidos, carentes de uma referência masculina para chamar de pai, a uma lama borbulhante com ares de fibra “patriótica”.

E, ao invés de se lamuriar, sem pressa, estas mulheres se apossam de seu salvo-conduto,e finalmente descobertas , saem poraí prontas para amar e serem amadas.

E ,assim, aquelas mulheres, se percebem novamente vivas e prontas para recomeçar, como a menina lá detrás, em sua plenitude, dando o ar de sua graça, para si mesmas e para o mundo, renascidas para provocar emoções e retomar seus tons, botando pra quebrar, conscientes de existir para brilhar.

CONTRASTE shellAHAvellar

O fundo é o céu plenamente azul.

O cenário são as cores que florescem e se contrastam.

Pares, lado a lado, que sugerem parceria.

Empertigadas e imponentes, as quaresmeiras se exibem.

Certamente provocam inveja nas gramíneas, nas parasitas, nas ervas daninhas e nos arbustos vizinhos.

Afinal, tanta beleza não pode passar impune.

Mãos anônimas arrancarão suas flores para colocar nos cabelos e deixá-las murchar, pouco a pouco, para sua diversão e gozo, e depois abandoná-las por aí.

Tentativas inúmeras dos seres artificiais, de se libertar da vida estagnante, vão se apoderando do seu brilho natural.

Mal sabem eles, os desHumanos, que ao abandonar as flores, aparentemente secas, no chão, elas renascem e se reinventam para embevecer os corações mais atentos e iluminar os corações desavisados.

E, a vida? Continua…

CONTRAST


The background is the fully blue sky.
The scenery is the colors that bloom and contrast.
Couple, side by side, suggesting a partnership.

Enpertigated and imposing, the quaresmeiras exhibit themselves.
They certainly cause envy in the grasses and neighboring bushes.
So much beauty can’t get away with it.

Anonymous hands will tear out their flowers to put on their hair and let them wither, little by little, for their enjoyment and pleasure, and then, abandon them around.

Countless attempts to free themselves from stagnant life by seeming to take over its natural brilliance.

Little do they know, the unhuman beings, that by abandoning the seemingly dry flowers on the ground, they will reborn and reinvent themselves to enlivece the most attentive hearts and illuminate unsuspecting hearts.

And, life? keep going …

ESPLENDORES shelAHAvellar

O porta-retrato caiu.

O vidro partiu.

Deus o tenha.

O estilhaço atiçou

Esplendores .

Riso de centauras

Em bocas de romãs

Atirando setas pro espaço,

Em terra de visigodos

E momentos de Babel.

Engulo engodos

E vomito lírios

Em cicatrizes de papel.

CLT – CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO shellAHAvellar

OLÁ,ALÔ! CAMARADINHAS!

VOU LOGO ME APRESENTANDO,

PORQUE NÃO TENHO TEMPO A PERDER.

EU SOU A LEI TRABALHISTA

CONHECIDA NO BRASIL COMO CLT.

QUE VOCÊ, ALIÁS,

COM TODA A CERTEZA,

JÁ OUVIU DIZER:

EU SOU A TAL DA CLT

CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO.

MAS NÃO DÁ PRA FALAR DE MIM,

SEM FALAR PRIMEIRO NO TRABALHO

CUJA ORIGEM VEM DO LATIM

QUE NA VERDADE É TRIPALIUM,

QUE SIGNIFICA TORTURA.

MINHA PRIMEIRA ATUAÇÃO

FOI A ESCRAVIDÃO,

DO HOMEM PELO PRÓPRIO HOMEM.

POR MUITO TEMPO ASSIM FOI,

SEM TER DIREITO ALGUM.

E ATÉ HOJE AINDA HÁ LUTA,

PRA SAIR DESTA DESDITA

DE UMA VIDA MAL VIVIDA.

A REVOLUÇÃO FRANCESA DE 1848

RECONHECEU O DIREITO AO TRABALHO.

E COM A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

NO FIM DO SÉCULO DEZOITO

O HOMEM QUE ERA COISA,

VIROU O TAL DE “EMPREGADO”.

E AQUELE QUE ERA O DONO

PASSOU A SER O “SALVADOR”.

DIGO “O EMPREGADOR”.

INAUGURANDO

UMA ESCALA DE CLASSES,

ENTRE OLHOS BAIXOS

E NARIZES EMPINADOS.

PASSOU A CHOVER TORTO,

CADA UM NO SEU TELHADO.

AQUI NO BRASIL

SÓ EM 1943

EU FUI APROVADA

PELO ENTÃO PRESIDENTE

 GETÚLIO VARGAS.

SÓ QUE A NORMALIDADE

DAS LEIS

FAZEM MAL À POESIA.

E EU TÔ AQUI PARA EVITAR,

QUE MAIS BOCAS SE VÃO AO CHÃO.

DESEXPLICANDO AS VILEZAS

DE REIS E DE SUAS REGÊNCIAS,

ARRANCO ÊXTASES DA AFLIÇÃO.

ENSAIO UNS PASSOS TRÔPEGOS

NA TRANSFIGURAÇÃO

DOS MURMÚRIOS EM GRITOS,

PARA DAR VOZ À LIBERDADE.

EMBRENHADA NOS ESCOMBROS,

DE UMA ESPERANÇA EXTINTA

E VIÚVA DE AMANHECERES.

LÁ ATRÁS, NOS TEMPOS DE ESTILHAÇOS,

NO LOMBO DOS NEGROS,

A FEBRE DA BARBÁRIE

FEZ ESCORRER O SUOR

E TROVEJOU SANGUE.

ARRANCOU DENTES DOS RIOS.

E FERIU A DOR.

COM OSSOS QUEBRADOS,

CONTAMINOU SONHOS,

ESPALHANDO NÓDOAS NOS SÓIS.

MUITA REVOLTA

PASTAVA NOS OLHOS

DA RAÇA NEGRA.

E EM SUAS VEIAS

PASSEAVAM

OURIÇOS DE CÓLERA

E IRA DE ORELHAS ENORMES.

QUILOMBOS POR ALFAMA,

REESCREVIAM A HISTÓRIA

COMO PEDRAS NAS SOMBRAS.

A RESISTÊNCIA E A MOBILIZAÇÃO

PARIRAM A ABOLIÇÃO.

CORTE DE MACHADO

QUE AINDA PAIRA NO AR.

ALFORRIA DE VENTO

QUE GARANTE O DIREITO

AO ETERNO SOFRIMENTO.

QUE ENGRAVIDA DE FOME

O VENTRE DO POBRE , DO NEGRO

 E DO FRACO.

E HOJE, ENGRAVATADOS

OS DIREITOS TRABALHISTAS

CONTINUAM ATORDOADOS.

E O EMPREGADO,

ENTRANDO DE GAIATO

COMO POEMA RASGADO.

E O EMPREGADOR,

COM PULMÕES DE IMPORTÂNCIA

TIRA COELHOS DE SUA CARTOLA

NOS ELEVANDO A COISA NENHUMA

PARA MELHOR NOS VENDER NO MERCADO.

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EI, VOCÊ,EMPREGADOR! shellAHAvellar

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A Consolidação do poder da burguesia na segunda metade do século XIX. Ao lado dos ricos e os poderosos (os “mais aptos”) impondo a ordem aos pobres e camponeses (os “mais fracos”).

Ei,Você,Empregador!

Que cria e desconstrói

À sua imagem e semelhança

Estupra seus homens

E apalpa as mulheres

Ei,Você,Empregador!

Que tem cobras

No bolso

E lagartos na boca

Que menstrua no trabalhador

Para ficar bem na fita.

Ei,Você,Empregador!

Holofote de sombras

Que apodrece esperanças

Que acinzenta o azul

e suja estrelas

Ei,Você,Empregador!

Ainda é tempo

De remexer seus destroços

Pendurar o terno no sol

Trocar as nódoas

E desatar os nós.

Ei,Você,Empregador!

É hora, aqui e agora

De negociar com a poesia

E se despir dos cacos

De sua desimportância

Ei, Você,Empregador!

É urgente

Se contaminar de pássaros

E olhar seu operário

Como se fosse lua cheia.

Ei,Você Empregador!

Hoje é dia de ventos

Manhã de desflorar ódios

E inaugurar parcerias

Ei,Você, Empregador!

O futuro é o ontem

Que grita :Presente

E engole ondas

De mares bravios

Para engravidar os rios

De carnavais de lírios

Deixando o poder

Fora de si

EI,VOCÊ,TRABALHADOR! shellAHAvellar

Operários-Tarsila do Amaral

Ei,Você,trabalhador!

Retalho de desprezos

Máquina de moer carne

Fragmento de horrores

Que impõem o silêncio

Diante do podre poder.

Ei,Você,Trabalhador

Colecionador de combates

Exumador de sonhos

Em holerites de Alfarrábios

Ei,Você, Trabalhador

Que bate à porta do corsário

De armações ilimitadas

E, se lança em alto mar

Por um punhado de moedas,

Ei,Você,Trabalhador

Judas de si mesmo.

Você mesmo,

Fugitivo da própria história

Ainda é tempo

De se reescrever .

Ei,Você, Trabalhador

De pé no cais

De frente pro Atlas

Com bilhete de entrada

Para infinitas possibilidades.

Ei,Você, trabalhador

Em Sua carta de alforria

Elipse de maravilhas raras

Hoje,Você assina seu nome

Com sobrenome Liberdade.

MEU ROCHEDO DE GIBRALTAR Shellah Avellar

Para Emy Avellar

Filha legítima de Saturno. Capricorniana com ISO 9000. Sim. Esta é a minha mãe.

Com tudo o que tem direito. Ou não. Até porque Saturno só tem deveres.  E disciplina. E regras e mais regras e limitações. Seu êxtase é a restrição.

“ Não” é sua palavra de ordem. Costumo dizer, que os capricornianos ao nascer, quando é dada a palmada inicial, marca do despertar propriamente dito, primeiro dizem “ Não”. Depois, choram.

Quando penso em minha mãe, a primeira imagem que me vem é do Rochedo de Gibraltar.

Sim. Ela está sempre lá. Inquebrantável. Impávido colosso. No mesmo lugar. A coluna de Hércules.

Quando adentra um ambiente qualquer, escolhe sua cadeira ou poltrona e ali finca suas raízes. Toma posse. Ali é seu trono. Dali ela observa o mundo e as pessoas e ordena.

A sensação que dá é que depois de meia hora, as raízes começam a brotar de seus pés e mãos e vai nascendo um carvalho portentoso que abriga a todos com sua sombra e nos alimenta com seus frutos saborosos e nos refresca com sua ramagem abundante.

Infância difícil. Aprendeu muito cedo a se virar. Para ajudar a mãe a pagar as contas.

Feliz de quem a contratava. Dedicada e competente. Tudo que um chefe poderia desejar de uma trabalhadora ideal: obediência, pontualidade e fidelidade aos protocolos.

Casou-se aos 19 anos com o primeiro e último amor de sua vida.

Entretanto este conto de fadas foi atravessado por alguns terremotos. A primeira e a segunda gravidez não vingaram. Até, que por fim, na terceira tentativa, depois de muitos exames e procedimentos, aconteceu a minha aparição, não sem dar bastante trabalho.

Nasci ao contrário, e sagitariana da Gema com Júpiter pulsando nas veias seu grito de liberdade e com Urano no meio do céu, já dando sinais de que vinha para contestar as regras e desordenar os princípios rígidos de Saturno.

Desde cedo estas diferenças se tingiram de cores mais nítidas e com o passar do tempo o embate era constante.

Como a relação era vertical, ao desobedecer, eu apanhava, todo dia e outro também. Por todos os motivos ou motivo algum.

Naquela época de criança, cresci achando que minha mãe era injusta.

Mais tarde compreendi que ela brigava consigo mesma, por não saber definir sua insatisfação e revolta contidas. E, eu, era a próxima mais próxima.

Entretanto ela me dizia: -Se desobedecer, você vai apanhar. Você escolhe!”

Eu escolhi apanhar. Porque ia dar no mesmo. A surra era certa. E, desobedecer era “minha praia”. Porque o simples fato de eu existir já deixava explícita uma oposição. Por nossa visão absolutamente diversa de mundo .

Desenvolvi um mecanismo de resistência e me alienava durante a surra. Pensava em outra coisa e não sentia doer.

Aí, para complicar mais ainda as coisas, veio a gloriosa ditadura. Que entrou de botas em minha casa e na minha vida. Era mais uma muralha para pular.

Me lembro que meu pai , me enviou uma carta ,através de um jovem recruta, onde dizia que estava preso por pensar diferente dos homens do poder.

Aquilo, caiu como um raio na minha cabeça. Eu também apanhava, apenas por pensar e agir diferente do “aparente” poder vigente dentro da minha casa. Que ironia!

Presenciei a luta de minha mãe, incansável em correr atrás de saber onde estava meu pai. Levado tantas vezes pela repressão. Violência esta, que entrava sem pedir licença. Invadia nossas vidas e nos destroçava várias vezes.

Ali se revelou a filha de Saturno. Apesar do medo, agarrou a vida “pelos chifres” e foi atrás de advogados. E, buscou nos quartéis do Estado do Rio de Janeiro, toda e qualquer possibilidade de informação sobre o paradeiro de meu pai. No meio de tanta traição e medo, a saga começou. Estudávamos nos ônibus as matérias para as provas. Ela cursava o magistério, sob incentivo de meu pai. E eu o ginásio. Íamos no Dops(Departamento de Política e Ordem Social) do Rio e Niterói. AMAN(Academia Militar de Agulhas Negras) em Resende e BIB (Batalhão de Infantaria Blindada)em Barra Mansa. Só de escrever estas siglas ,ainda me arrepio.

Testemunhei sua luta para defender e fazer de tudo para tentar libertar o seu companheiro.

No meio de tanta insegurança o Rochedo se manteve lá. Sendo chicoteado pelas ondas turbulentas da vida.

Terminou seu curso, tirando o primeiro lugar do Estado do Rio de Janeiro e lhe angariando a possibilidade de escolher em que escola gostaria de lecionar, em qualquer lugar do Estado do Rio.

E, finalmente quando localizamos o meu pai .

Dois anos e meio após esta desdita de mudanças e de idas e vindas, voltou para casa.

Três anos mais tarde, quando estava começando a se sentir livre.

A vida lhe pregou outra peça.

Mamãe perdeu seu amado. Desta vez ele se foi para não mais voltar.

Enviuvou aos 42 anos. Nunca mais se casou.

A depressão veio e a prostrou. Foi um ano de desespero.

E, eu, que precisava tanto de colo, virei sua mãe.

Precisava tirá-la daquele estupor.

No ano seguinte abriu o curso de Ciências Exatas. Exultei! Era a sua chance de renascimento. Fiz sua inscrição no Vestibular e a minha também, para que não se sentisse deslocada. Passamos. Lá reencontrou amigas de infância. Foi a glória. Sua outra paixão a salvou. A Matemática viera para ficar e se casaram para sempre.

A alegria do desafio voltara a reinar lá em casa. E o vazio foi preenchido pelas amigas barulhentas da faculdade que estudavam e fofocavam juntas.

Outras chuvas vieram. Mas, os anéis de Saturno a mantinham de pé.

Depois perdeu o pai.Um sentimento sem nome.

Lhe dei uma netinha e o gosto pela vida se reacendeu.

E, então se foram a mãe e a irmã. Uma em seguida da outra. Um silêncio solitário por alguns meses.

Teve um diagnóstico de degeneração da mácula. Com a visão comprometida, não poderia deixá-la sozinha , ou com estranhos. Esta tarefa era minha. Diante disto, eu a trouxe para morar comigo por aqui em Sampa.

Foi o tempo certo para aparar as arestas. Muita conversa. Muitas gargalhadas e palhaçadas minhas e da neta para levantar o seu astral. Alguns estranhamentos no início. Mas, temperamos tudo com muito amor ,parceria, companheirismo e perdão.

Sobrevivemos com galhardia.

Até que voou, como um passarinho.

Disse: -Estou cansada. Virou-se para o lado e se foi.

Para encontrar seu grande amor.

Em casa. Sem dor. Sem Uti. Sem hospitais.

Ali estava eu. Lado a lado. Até o fim.

Com a sensação do dever cumprido.

Mais uma vez.

E, agora o que resta é a certeza do reencontro.

E, vez por outra, quando preciso de um alento, me sento na pracinha, embaixo do carvalho e sinto sua presença e sua voz a me sussurrar: -Não desista! Você é uma vencedora!

E ressoa em meus ouvidos:-Tenho muito orgulho de ser sua mãe.

E eu respondo- Sou uma felizarda por encontrar a resistência que moldou em mim a revolucionária.

Obrigada, mãe. Guerreira Saturnina. A honra é minha.

E veio uma floração de claridades.

Boralá em frente!

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Gibraltar – Último símbolo do domínio dos mares pela Inglaterra | Monitor Mercantil

A TEIA DE PENÉLOPE Shellah Avellar

Para Vovó Lila

Olhar sereno. Profundo. Silêncios ensurdecedores.

Gavetas de retalhos coloridos. Terços imantados nas ranhuras do seu tempo.

Vovó Lila era um oásis no meio das tormentas.

Sim. Sua vida era o entretecer. Era o que acontecia entre alinhavos e desalinhos.

Infância intrigante. Morou numa fazenda que tinha escravos( o que me causa bastante desconforto). Sua mãe, a única filha mulher entre homens. Seu pai, um capataz. Sua mãe foi deserdada por preferir um trabalhador rural e não os pretendentes indicados pelos pais.

Mudaram para um sítio.

Daí, já vinha o conflito, que iria chulear sua história.

De agulhas e linhas em punho vai costurando sua vida, um rosário de lágrimas.

Mocinha, se apaixona pela primeira vez. Mas, segundo ela, o tal moço foi-se embora para nunca mais voltar, deixando seu coração desalentado e algumas ilusões desbotadas.

O destino lhe reserva uma segunda chance. Moço bem apessoado, lá das bandas de Niterói, capital do Rio de Janeiro na época, entra em cena e reacende seu coração desesperançado.

Cai em suas graças e fica à mercê de sua mente afiada e de seu humor ácido. A boa e velha parceria Taurus e Virgo se consolida.

Mas, oh…o equívoco. O tempo lhe mostrou uma outra face deste taurino às avessas, que ao invés de prover, jogava sua vida fora nas cartas e no álcool.

E a insegurança material era a bola da vez. Vivendo de favor, de casa em casa. O que lhe deixou marcas indeléveis e em suas filhas.

Inverteram-se os papéis. A mulher sensível e disciplinada se vira do avesso e forra sua vida com o aprendizado do ofício de costurar e bordar.

Afinal, já existem duas filhas para sustentar. É preciso se fortalecer e resistir às intempéries.

Dona Lila vai à luta. Costura dia e noite e noite e dia. Borda e tricoteia. De tudo faz arte e chega a dar aulas de bordado na multinacional Singer do Brasil.

O resultado é a herança de colchas, toalhas e lençóis de linho bordados à mão e à máquina. Primoroso trabalho que hoje lhe daria um bom troco. Pelo que vejo nas lojas de roupas de cama e mesa , de alto luxo por aí nos shoppings da vida.

Eline Sağlık , como diriam os turcos: -Saúde para suas mãos diligentes e precisas.

Tudo o que fazia era com esmero. Desde a arrumação da casa até a lavagem das roupas e impecáveis passadas a ferro. Sua comida era deliciosa. O aroma dos temperos engoliam a atmosfera da casa e nos fazia salivar.

E suas confecções de indumentárias certamente causariam algum estupor e excitação à Chanel e Dior. Até os meus dezoito anos, eu desenhava e ela confeccionava minhas roupas.

E, repetia, com orgulho:-Uma boa costureira se conhece pelo avesso e pelo acabamento “.

Tudo com a precisão de um reloginho suíço. Creio que desbancava as formiguinhas. Tenho minhas dúvidas se não há um monumento erigido à Dona Lila nos formigueiros profundos deste planeta .

Sinto, até hoje, falta do cheirinho gostoso de sua broa de fubá, que ficava pronta às 15h em ponto. Era só correr para a cozinha que lá estava a majestosa broa, no centro da mesa, junto de um bule de café fumegante.

Eu dispensava o café. Hábito de consumo, que só fui adquirir em São Paulo, muitos anos depois. Eu pegava uma faquinha e tirava somente a casca da broa, porque nunca gostei de maçaroca, nem miolo de pão e nem de pastas. Ela ficava fula da vida e saía correndo atrás de mim e gritava:- “A ratinha já passou por aqui”. E, isto, era todo santo dia e outro também.

Quando meu pai se casou com sua filha mais velha, sua primeira providência foi comprar a casa onde meus avós maternos moravam de aluguel, para sanar de vez a preocupação de minha vó e minha mãe, de ter um teto para chamar de seu.

E, este gesto lhe rendeu uma gratidão milenar e o título honorário de filho forever and ever.

Sempre soube que meu avô materno era adicto de jogos de azar e dependente de álcool. Entretanto, nunca o vi alterado porque minha avó Lila tinha dado um basta naquela vida de esbórnia, para o bem de todas e felicidade geral da nação, colocando remédio em sua comida, para frear o vício que alimentava outros vícios.

Quando meu pai morreu, num acidente de automóvel, meu avô, olhos em chamas, apareceu, embriagado, lá em casa. Eu abri a porta. Ele se ajoelhou e me pediu perdão, dizendo que ele deveria ter morrido e não meu pai. E que tinha perdido um filho. Caiu em prantos e eu com ele. Nos abraçamos e só consegui sentir paz por aquele sentimento tão contundente, misto de admiração e dor.

Anos mais tarde, quando meu avô foi acometido por um câncer avassalador no baço , minha avó Lila cuidou dele com tamanha dedicação e carinho, como se fosse um bebê. O bebê que não cresceu. Que ela cuidou até o fim, como mãe, irmã e companheira.

Lembro-me bem, quando ele, esquelético e já bem fragilizado, sentado no sofá, e minha avó de pé. Ele abraçou sua cintura e descansou a cabeça em sua barriga, e num gesto extremado de arrependimento, agradeceu a ela por tudo e os espinhos foram dando lugar às rosas despetaladas por toda uma existência.

Quando, finalmente, ele partiu, sentada a seu lado no sofá da sala, presenciei seu choro contido e liberado aos solavancos da dor de toda uma jornada de renúncia à sua própria felicidade em prol dos seus.

Ela liberava um suspiro profundo a cada expirada como se o peso fosse demasiado pesado para descarregar de vez.

Anos depois, quando decidi me separar de meu marido, após um ano de relacionamento, e dar um basta num casamento com afeto, mas, prematuro e imaturo, fui me aconselhar com ela. Eu disse: – Não quero continuar. Creio que cometi um equívoco. Gosto dele, mas não quero fazê-lo sofrer. Creio que nos distanciarmos agora será melhor para os dois.

Ela disse: -Faça isto minha filha. Antes que seja tarde demais. Eu não pude fazê-lo. Faça por mim e por você.”

Algum tempo mais tarde, já em São Paulo, quando pari minha filha, e resolvi criá-la sozinha, ela estava lá, de braços abertos para recebê-la.

Pude apreciar finalmente sua alegria.

Seus olhos brilhavam. Era a continuidade. A vida em seu esplendor.

Ela pôde ser, simplesmente avó, na sua mais completa tradução.

Testemunhei seus paparicos e sua volta à infância. As duas, ela e minha filha, brincavam e brigavam pela posse de brinquedos. Uma me fazia queixas da outra.

 E, isto, era cômico e lindo.

Ainda guardo a lembrança de você, vovó, na sua poltrona favorita, com minha filha bebê em seu colo e as duas dormindo o sono dos anjos.

Anos mais tarde, fui acolher minha tia, sua filha mais nova e minha madrinha, sem filhos, que teve um diagnóstico implacável de câncer no pâncreas, fígado e rins. Os médicos lhe deram 3 meses de vida. Fui para os Estados Unidos. Os médicos se enganaram. Ela sobreviveu ainda um ano e meio, após este diagnóstico.

Quinze dias depois que cheguei lá, minha vó Lila, faleceu na Santa Casa de Barra do Piraí, no estado do Rio de janeiro..

Não pude estar com ela. Não havia tempo hábil para chegar para o velório e sepultamento.

Morreu sem saber que a filha mais nova tinha câncer e estava com os dias contados. Não sabia conscientemente.

Mas, resolveu ir-se embora para recebê-la, lá num espaço sem tempo e nem lugar, onde os sonhos se tornam realidade.

Ela não se cansava de repetir em várias outras ocasiões , que eu “puxei a ela, nas artes.”

E eu sou grata, vovó, por você achar que estou à altura de seu talento e de seu DNA.

Espero jamais decepcioná-la, estrela que abdicou de seu brilho. Passarinha que optou pela gaiola. Força obscura de seu elemento terra que explodiu em frutos para dar de comer às filhas. Húmus que vomitou flores para enfeitar a opacidade de seu entorno.

E, eu sei, que em alguma nuvem cor de rosa, você está sentada confortavelmente, tecendo a teia de Penélope, aguardando o retorno de seu Ulisses, para que a profecia dos contos de fadas se concretize e você possa desfrutar da felicidade que tanto merece.

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Penélope – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

VOLVER A LOS 64 Shellah Avellar

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo

Es como descifrar signos sin ser sabio competente

Volver a ser de repente tan frágil como un segundo

Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios

Eso es lo que siento yo en este instante fecundo

Violeta Parra, “Volver a los 17”

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Subindo o tom doloroso até o sublime, minha fala tem um quê de garota, quando se trata do golpe militar de 1964, que está completando agora 57 anos.

Brusca epifania que me aperta a garganta.

Na época eu tinha nove anos de idade. Não sabia do que se tratava. Somente que, de repente, minha casa virou um pandemônio. Ora militares do Exército, ora da Polícia Militar chegavam sem avisar e sem pedir licença e jogavam tudo pelos ares e nos reviravam pelo avesso.

Numa destas vezes, eu brincava no quintal, sol a pino, e uma sombra por detrás me fez voltar a cabeça. E me deparei com uma metralhadora bem diante do meu nariz. Enquanto isso, outros invadiam minha casa.

A imagem de minha mãe desfalecendo e se “urinando” na porta de entrada.

Meu avô trancando as portas e janelas de sua casa, que ficava no mesmo quintal.

Os livros tão amados por meu pai e por mim sendo jogados numa fogueira, sob meus protestos e prantos.

Durante alguns muitos anos, eu ainda desmaiava quando via um carro de polícia ou caminhão verde de manobras do Exército.

Não se falava no assunto. Bullying na escola, quando colegas me importunavam pedindo informações: “Por onde anda o seu pai???”. Naturalmente orientadas pelos pais deles para que eu revelasse o paradeiro do meu e pudessem eles mesmos denunciá-lo à repressão, ou por simples mórbida curiosidade.

Naturalmente não sabia o que era ser esquerda no país.

As incoerências me avassalam hoje, tanto quanto antigamente. Via meu pai ser recriminado e eu também, por tabela, por ser a filha do comunista.

Recebi certa vez uma carta de meu pai por intermédio de um cadete, em que me explicava que estava preso por pensar diferente dos homens do poder e não porque havia cometido algum crime, do tipo roubar ou matar.

Na verdade ainda nem sabia que meu pai estava preso, tamanha era a confusão em que nossas vidas haviam se transformado.

Silêncios. Cochichos. Mistérios. Medo.

E solidão. Muita solidão.

A ARTE IMITA A VIDA?

Em 1997, assisti ao filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira. E dei muita risada. Coisa curiosa ver atores e atrizes, cuja característica principal era o humor (por causa das atuações em divertidas séries televisivas), em papéis de drama extremo. Luiz Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Pedro Cardoso e Cláudia Abreu, atores que respeito muito e admiro, fazendo os revolucionários e sequestradores. Não me comovia. Não me atravessava, naquele momento.

O que é que é isto, Companheiro? filme de Bruno Barreto

Entretanto, num dia qualquer de 2003, aqui em São Paulo, fui ver Kamchatka, sem ler sinopse, tampouco resenhas. Pelo título achei que deveria ser algum filme passado em um cenário oriental. Totalmente desavisada e com minha filha, que deveria ter uns nove aninhos, me sentei, com pipocas em punho. À medida que o filme foi acontecendo, pela visão de um menino de nove anos, cujos pais eram militantes na ditadura da Argentina (1976-1983), fui me vendo, não na história em si, fui me identificando com o olhar de quem vivenciou aqui no Brasil aquela solidão. A falta de informação e o medo. As cenas se sucediam e uma, em especial, em que o menino corria atrás do carro dos pais, me remeteu a um dia, quando chegava da escola e vi um jipe do Exército levando mais uma vez o meu pai. E eu correndo gritando atrás do jipe na esperança de tentar deter mais uma vez o sumiço dele. O desespero do menino e aquela sensação de perda e de abandono me aterraram e despenquei num choro convulso e catártico dentro do Cine Lumière, no Itaim Bibi. Luzes se acenderam. Havia umas quinze pessoas. Fui até o toalete e lá continuei num pranto convulso que jorrava desapontamento, cicatrizes indeléveis de um tempo ladrão de alegria e sequestrador de ilusões. Era o disparador de tantas mágoas contidas. De tanto desconhecimento. De tanta dor. Ainda assim voltei para ver o filme e continuei soluçando durante toda a segunda projeção.

Minha filha, em sua ingenuidade, sacou: “Você tá assim porque se lembrou do vovô?”. Isso, sem nem sequer tê-lo conhecido, porque ele morrera num “acidente” de carro em 1971. E ela nasceu em 1993.

Kamchatka, de Marcelo Pineyro (Argentina, 2002)

O NÃO PERTENCIMENTO

Mas, e daí? Cresci achando que meu pai morreu num acidente trágico. Hoje, cinquenta anos após sua morte, alguns insistem na hipótese de não ter sido acidente. E me vejo às voltas com a Comissão da Verdade, procurando agulha em palheiro.

Mais um baque num corpo emocional que acredita ter superado essa questão, que, entretanto, volta sempre a incomodar. Reverencio a revolucionária que em mim habita, defendo-a e encaro a disciplina que ela exige para se realizar. Volto à juventude que clamava por um mundo ainda possível naquele realismo utópico, de “resistência”.

Vejo tantas e tantas reportagens, artigos, pontos de vista sobre estes 50 anos do golpe. Entretanto, tem gente da minha geração que passou por ela e não sabe que ela existiu.

Mais uma vez, este sentido de “não pertencimento” me acomete. Não se ouviam os gritos. Não se presenciavam os horrores. Tudo era minuciosamente camuflado dos sentidos dos homens comuns. Só rufavam os tambores para os “de esquerda”. Para os que se achavam inteirados de tudo e lutavam pela Liberdade. Liberdade, esta, questionável aos olhos da elite conservadora e do sectarismo da Igreja. Não me reconhecia e não me reconheço ainda nestes moldes de hipocrisia.

Hipocrisia, esta chaga que sangra e se arraiga cada vez mais nos modelos do establishment.

BASTA!

Sei lá se escrevo bem. Sei lá se estou sendo fiel aos mártires deste holocausto brasileiro, pelo valor universal que eles merecem por uma luta à altura de sua história.

Fiz protestos. Shows em universidades. Peças de teatro e festivais de música. Muito antes de ser uma universitária. Queria que ouvissem o grito da minha dor. Era uma graça que me concedia para me suprir da minha própria perda.

Continuo hoje tentando ser solidária a meus sentimentos e a minha verdade grita: “Chega!”.

Basta de se esconder debaixo da capa burguesa que corrompe tudo que toca. Destas amostras de barro que nos formatam, endurecem e paralisam em nome de uma vida melhor. Das etiquetas e do status que determinam nosso padrão de vida, como “bem ou malsucedido” pelas posses, pelos cargos, pelos títulos e pelas aparências.

Não me detenho mais em nome de nenhuma doutrina, partido, associação, seita ou facção. Sigo em meu próprio nome. Na verdade vou (me) esculpindo, dia após dia, ao encarar e transmutar minhas crenças provisórias.

Me interessa “tentar”, ao menos, ser coerente com o que penso e digo. Para não dar distorção e me transformar num ser humano amorfo, cuja legenda está fora de sincronismo. Dou lugar àquela criança impetuosa.

Não sou de direita. E me recuso a ser muro. Pendo, sim, para a esquerda. Porque é a esquerda que reconheço, através dos séculos de história de exploração do homem pelo homem, que vem gritar contra as injustiças sociais, contra os preconceitos, contra as discriminações de qualquer tipo, gênero, raça, fé e poder econômico.

Não me filiei a nenhum partido nem a nenhuma facção política, a fim de continuar livre para ir e vir. As associações e instituições refletem os preconceitos e estereótipos de seus dirigentes. E cada uma, a seu modo, tenta nos incutir seu modus vivendi, estendendo seus tentáculos para nos transformar em seres robóticos, acomodados numa forminha de gelo, a seu bel-prazer.

À LA GAUCHE

Volvendo à esquerda, quando ela cumpre seu papel revolucionário de ir contra a corrente, do abuso de poder e das ideias. Sejam elas quais forem. Principalmente se ela está a favor dos fracos e oprimidos, dando a eles condição de sair de sua triste condição e ensinando-os a lutar pelos seus direitos, qualificá-los pessoal, profissional e socialmente, mas sem desconhecer seus deveres.

Assim como há pobres soberbos, há ricos humildes. O homem imprime seu valor com ações e frutos. O subversivo é quem subverte o que oprime. Jesus era subversivo aos olhos do governo de Roma. Não havia outra solução a não ser eliminá-lo, por um motivo qualquer, como continuam fazendo com quem incomoda o poder vigente. Há casos em nossa própria história, como Tiradentes e mesmo o contraditório Calabar, que decidiu trocar de lado, a favor talvez de um protopovo brasileiro. E tantos outros por aí afora.

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Protesto contra a ditadura, 1968, Rio de Janeiro

DESANIVERSÁRIO

Nestes 57 anos de desaniversário do golpe de 64, só me lembro de que perdi meu pai tantas e tantas vezes. Ora pelo desconhecimento de onde ele estava. Ora pela própria militância. Ora pela Polícia Militar. Ora pelo Exército. E, finalmente, pela própria morte, em 1971.

E me desculpem os que se consideram “de direita”. Os que se consideram os certos e bem direcionados na vida. Os formadores de opinião. E mesmo alguns acadêmicos e intelectualizados da elite da esquerda. Muitos destes nem sequer sabem o que é militância.

Só me lembro do seu olhar, na hora de irmos embora, quando íamos visitá-lo, quando finalmente soubemos onde ele estava.

E do dia em que finalmente voltou para casa e seus amigos lhe perguntaram qual o sabor da Liberdade. Ele respondeu que ainda era cedo para descrever. Com seus braços amarelos de nicotina até o cotovelo, olheiras fundas, manchas roxas e afundamentos por todo o corpo esquelético. E uma tristeza milenar, que identifico nos olhos de Che Guevara, de Mandela, de Gandhi. Tais como os olhos de Jesus em suas tantas representações pictóricas. Imagens que vêm, vez por outra, atormentar meus eternos questionamentos.

Idealismo? Endeusamento? Sei lá… Meu pai era um pobre militante anônimo para as estrelas da luta armada em todo o país. Como centenas de outros hoje desaparecidos, sem paradeiro, sem história. Apenas um fantasma que nos assombra. Em nome de um passado sem glórias.

Mas, para mim, era, e é, um herói que me ensinou, pelo exemplo, que todos os homens são iguais, e também a não se curvar diante da ilusão de poder, seja ele qual for.

Imperfeito. Assumia suas incoerências. E ouvia com atenção minhas admoestações de menina e moça. Me dando ares de importância. Apoiava minha forma de realizar e me deixava livre para errar e acertar por minha própria conta. Parece que sabia que iria logo embora e procurou passar, desde cedo, livros e ensinamentos, em que me calco até hoje.

Simples. Direto. Uma oralidade ímpar. Carismático e amado por todos, ou quase. Naturalmente não pelos que se consideravam os baluartes da história dos supostos não pensantes. Ele, para estes, era a ovelha negra, a ser extirpada da sociedade. Mas o seu amor incondicional pelo ser humano me encantava e me comove até hoje. Guardo de 64, e dos anos de ditadura, marcas que dificilmente o tempo apagará. Assim como alfinetes esquecidos por algum alfaiate distraído. Mas não faço a apologia da necrofagia. Entretanto, apesar das infâmias praticadas em nome da lei e da ordem, nenhuma especulação escapará da trágica realidade da história.

Mas o amor que aprendi com este amigo, irmão, companheiro e só por acaso meu pai me acompanha, e me faz não desistir cada vez que encontro muralhas de incompreensão. E, resistindo à hipocrisia, me rendo à Liberdade.

Oh! Liberdade! Liberdade!

Que ela abra suas asas sobre nós.

E volvo a los nueve, doce, diecisiete, dieciocho, tantas vezes quantas forem necessárias, para louvar o presente de ter tido Almair Mendes Avellar como meu pai, meu país nesta “encadernação”.

Nota da autora:

Escrevi esta matéria em 2014.No Desaniversário de 50 anos do Golpe Militar de 1964.Este texto, despertou a atenção de vários jornalistas .Fui entrevistada pelo Jornalista Peu Robles para o site MEMÓRIAS DA DITADURA. ( Memórias da ditadura – Instituto Vladimir Herzog ) que percebeu minha agitação e me recomendou para a Clínica do Testemunho do Instituto de Projetos Terapêuticos -projeto de um grupo de Psicanalistas e Psicólogos que acolhiam em rodas de conversa e desabafos os ex- presos políticos , exilados e seus filhos e netos. Este projeto durou 2 anos e lá fui recebida com calor humano por todas e todos e pude falar com tranquilidade sobre o assunto depois de quase 45 anos de silenciamento.

Depois participei do projeto Margens Clínicas entre outros.

Posto aqui o registro da Oficina Retalhos de Memória da designer Camila Sipahi, que fazia parte de nosso grupo ,onde bordamos sobre fotos nossas e de nossos queridos e queridas redefinindo as memórias e reconstruindo os cacos da devastação que a Ditadura Militar deixou em nossos corpos, corações e mentes.

“Na Clínica do Testemunho, através dos Projetos Terapêuticos e memórias de dores revividas como resquícios da Ditadura Militar, alinhavamo-nos uns aos outros. Aprofundamos a busca por relações mais profundas, entremeadas por emoções recortadas e bordadas no processo.

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA SP

Este Estandarte está exposto no MEMORIAL DOS DIREITOS HUMANOS em Belo Horizonte,MG

#aMemóriaSIM #aVerdadeSIM #aJustiçaSIM

HOJE

Estamos em 2021.A pandemia do Covid 19 e suas mutações ,dispara como um raio sob o descontrole de um governo eleito pelo povo, pós novo golpe em 2016.

Aos berros de uma evocação à família e à igreja, destituíram a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.

E,hoje, com mais de 300 mil brasileiros mortos pelo Covid, e outros tantos milhares internados em estado grave,e outros à espera de insumos, medicamentos, tratamentos ,leitos e vacinas, o nosso desgovernante tenta desesperadamente se manter no poder, desestabilizando as instituições , a economia, a educação ,as ciências e as artes.

Uma arrogância cega que deixa um rastro de dor e miséria, e, ainda assim, encontra ressonância em seus vassalos, com os quais, articula constantemente perfídias contra o povo brasileiro.

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