Não há nobreza mais antiga do que a dos jardineiros, dos abridores de fossas
e dos coveiros…
Quem é que constrói mais solidamente do que o pedreiro, o carpinteiro e o
construtor de navios? Quando te fizerem de novo essa pergunta, responde que é o coveiro, porque a casa que ele constrói dura até o dia do Juízo.
HAMLET, ATO V, Cena I William Shakespeare
Uma descoberta de nossa insignificância permeia o noticiário e a nossa mente por conta da pandemia do COVID19. Ou, para os menos sensíveis à dimensão em que o Corona Vírus reafirma sua realidade, no estado de São Paulo, com mais de 3000 óbitos, e o Brasil como epicentro com aproximadamente 149 mil contaminados, como apenas uma “gripezinha”.
O estado de coisas do abandono, nos condena a um obscuro naufrágio de nosso personalismo ao nos defrontarmos com o verdadeiro sentido da vida.
Fecham-se as cidades e morrem-se aos montes por aí, mundo afora. A imprensa se limita a túmulos e as pessoas inventam epitáfios que se servem da arte para oferecer a si mesmas a própria tragédia de não poder se despedir condignamente de seus entes queridos.
Os cidadãos do planeta Terra se limitam às janelas de suas casas para poderem observar o mundo e a ele se apresentar numa comunhão mística com sabor de desespero.
O imaginário se relaciona com lendas fúnebres. A melancolia parece esgotar a fonte do fantástico.
Uma virtude humanística se ergue como fraternidade viril de tentar alimentar a fome da massa que sempre a conheceu de perto.
A vontade se promove convertida à declamação política confinada, que é ao mesmo tempo a razão da derrota e a infeliz submissão ao bestiário que assola o país.
Tudo o que se sabe deste tsunami pandêmico no Brasil, é que é brutal e dissimulado. Que anestesia o povo, enchendo as valas comuns e causando um colapso.
E,os invisíveis, são proclamados heróis. Os profissionais da Saúde, da Limpeza e os Coveiros estão sob os holofotes.
Mas, quero me ater aqui, precipuamente, aos coveiros.
Estes seres humanos ,que em várias sociedades do mundo sofrem grande discriminação social e são rotulados como “impuros.
Na Índia, pertencem à casta dos “intocáveis” e no Japão conhecidos como os “burakumin”.E,aqui, no Brasil,seriam então denominados de “Os Severinos”.
Será esta então a Nova Revolução Social ,da qual não nos demos conta porque estamos ocupados demais tentando xingar o desgoverno e fazer memes e chistes “ de” e “sobre “ quem não merece um milímetro de nossa atenção?
Mas,como podemos pensar em revolução se estamos apenas olhando nosso umbigo e reclamando de nossas mazelas enquanto os soldados da linha de frente se arrebentam para tentar curar ou sepultar nossos mortos?
Admitir definitivamente que vivenciamos um luto político em que a Democracia agoniza em praça pública?
E,quem pode se equilibrar entre reflexão e ação?Quando o enigma das formas demoníacas da Babilônia e da Igreja têm a mesma face?
Quem resistirá à invasão dos répteis e a ode ao blefe?
Segundo Karl Marx ,a classe revolucionária ascendente está destinada a suplantar a classe dominante anterior . E é frequentemente referida como “coveira” da classe anterior. Assim, o papel histórico da burguesia seria de “coveira do feudalismo.
Tendo depois criado uma vasta e explorada “classe trabalhadora” , destinada a organizar e a promover uma revolução, teria feito com que a burguesia inevitavelmente criasse sua própria” coveira”.
Isto me faz lembrar um fato interessante sobre meu pai marxista e Samuel.
Ao menos duas vezes por semana, um senhorzinho muito simples,extremamente magro,mas de estrutura pétrea e com músculos definidos.Faces macilentas e sulcadas de rugas profundas .E calos que se apresentavam num aperto de mão vigoroso.Batia lá na porta de casa às 5 horas da tarde.
Era o Samuel.Quando meu pai não estava a gente se limitava a dar a ele um dinheirinho que meu pai já deixava reservado ao personagem desta história.Quando meu pai estava, convidava o velhinho para entrar, sentar-se à mesa conosco para um lanchinho,para horror de minha mãe e para aguçar minha curiosidade sobre aquele homenzinho quase sempre com cheiro de suor forte e olhar triste e penetrante.
Um dia perguntei ao meu pai,porque ele o convidava e quem era aquele homem.Ele repondeu com a maior tranquilidade: -Samuel é uma espécie de herói.Ele atende a humanidade no fim da cadeia alimentar.Merece todo o nosso respeito.
Quando meu pai morreu,num “acidente de carro” em fevereiro de 1971,minha mãe ficou com depressão profunda e eu fui impedida de chorar em casa,porque ela começava a gritar.
Então,eu ia ao cemitério,visitar o túmulo de meu pai,para poder chorar“tranquilamente”.
Mas, quando lá chegava,era mais uma vez impedida de chorar.Porque o “coveiro “ Samuel estava inconsolável e chorava copiosamente a morte de meu pai.E alguém tinha de lhe dar atenção.E,este alguém era eu.
Por conta dos óbitos tenho pensado muito no Samuel e em todos os outros Samuéis que talvez não tenham tido a sorte de encontrar alguém que lhes respeitassem e lhes desse o verdadeiro crédito de heróis.
Aqui vai a minha gratidão aos Samuéis e Severinos que se transformaram em Prometheus permitindo aos nossos ter ao menos uma cova digna para poder perecer serenamente e receber o nosso adeus, ainda que à distância.
E para Aqueles que exploram a fé dos cegos e desavisados, em atos que se traduzem em cifras e impropérios, ofereço a minha compaixão de que é preciso perdoá-los “porque não sabem o que fazem”.
E, que tomem conhecimento de que “ninguém engana todo o mundo, todo o tempo e para sempre.”.
Os homens se massacram aos milhares, seja por “propaganda enganosa” ou por odiosa violência.
No momento o que nos aproxima é um inimigo comum invisível.
O que nos separa é a defesa de privilégios e “mais valia” em detrimento da Vida. Talvez seja preciso muito tempo , sangue suor e lágrimas, para que se sonhe com a libertação.
Mas com a Vida e a Morte, não há negociação. Somos todos reféns de Samuéis e Severinos.
Mais dia, menos dia, teremos um editorial de adeus e seremos apenas um número em alguma lápide esquecida de algum cemitério.
Resta-nos deixar um rastro de poeira de fim de mundo que caracterize nossas escolhas em vida:
Mentiras e baixezas? Ou sonhos de liberdade e igualdade?
Finalizo com o Funeral de um Lavrador do velho Chico Buarque, bom companheiro de balbúrdias sem fim:
Esta cova em que estás por palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida.
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45132/
tema Musicado por Chico Buarque para MORTE E VIDA SEVERINA de João Cabral de Melo Neto
charge@laertecoutinho
Nada mais certo que sermos todos reféns de Samuéis e Severinos.
Grata ,Israel! É “a lei da vida”
Excelente texto, Sheila, grande conterrânea. Me tocou profundamente.
Obrigada pelo carinho,Janne. Boralá em frente!”Somos todos e todas iguais nesta noite”
Profundo, muito profundo. Parabéns!
Meu kerido e eterno Amigo Adelpho.Foi Tão profundo k chorei copiosamente quando terminei o texto.O desabafo era urgente e necessário.Grata por sua presença em minha vida