SÍNDROME DE UP Shellah Avellar

Para Eugênia e Vinicius

Não tive o privilégio de conviver com o Vinicius.Mas, aprendi ao longo de meu tempo no Planetinha, que conexões são atemporais.

Vez por outra, eu via algumas fotos suas com seus familiares e amigos no Facebook.

E, particularmente com sua “adorada” mãe Eugênia.

Depois, pessoalmente, o vi na Caminhada do Silêncio no Parque Ibirapuera, onde flagrei sua presença “atenta” na plateia.

A sua doçura me chamava atenção e sua beleza ímpar “indoor e outdoor’.

Assisti, por acaso, seu vídeo de aniversário, onde emocionado, falava de quão  sortudo era por ter chegado aos 25 anos.

Vinicius era portador de síndrome de Down.

Aos meus 17 anos, lecionei Artes Cênicas e Criatividade para crianças da APAE , em Barra do Piraí , Rio de Janeiro.

Professores e Monitores tentavam me desencorajar de montar uma peça com eles:” Não crie grandes expectativas.Eles se dispersam.Apenas faça seu trabalho”.

No primeiro mês ,apenas observava cada um deles. Suas peculiaridades e comportamento.

E, aí, fui tecendo um texto para a peça. ”Amo, logo, existo”

Infelizmente , não achei o texto para reproduzi-lo aqui. Mas, me lembro da minha satisfação radiante cada vez que um deles decorava suas falas. Até partir, finalmente, para a interação de uns com os outros.

Me inspirei nas formigas, que se organizam para carregar uma folha até o formigueiro. Num trabalho árduo, coeso e imperceptível a olhos desatentos.

Deixei que o receio e a vontade se digladiassem para “confundir os incrédulos.”

E, assim, 6 meses depois, eles se apresentaram no palco de um clube da cidade.

Conversamos antes.Nos abraçamos e os posicionei.

Eu mesma,fiquei ali no gargarejo, rente ao palco, lado a lado com o sonoplasta e o iluminador.

Atenta a cada detalhe. E,seus olhos , a cada fala, me procuravam pedindo por aprovação.

E, isto provocava em mim, lágrimas convulsas.

E, assim foi, até o final apoteótico.

Não erraram uma sílaba. Nenhuma acentuação.

Quando terminou, me arrastei até o palco. Recebi seu afeto e sua ternura.

Só eu chorei. Eles estavam conscientes de que fizeram o que haviam combinado e, “tudo bem”.

Quanto a mim, jamais fui a mesma. Não houve nenhum mérito em minha obstinação. ELES fizeram o Milagre. Promoveram sua batalha de independência. E me trouxeram uma paz incomensurável.

Depois disto não tive condições de dar continuidade, por dificuldade em conciliar faculdade e trabalho profissional.

25 anos depois, retornei à cidade. Um deles, me reconheceu na rua. Me chamou pelo meu nome, descreveu cada pormenor da peça e disse: ” Obrigado.” Como se o tempo não tivesse passado. O Hoje era o espaço-tempo de um lugar mágico na memória daquela criança-adulto- que me deixou registrada  em sua memória afetiva. Claro, me derramei novamente em lágrimas, e pedi para acompanhá-lo até sua casa, para abraçar seus pais e sem condições de emitir uma palavra sequer.

Estas crianças, e digo, crianças, porque mesmo adultos, carregam em si o frescor da infância. Alguns eram mais velhos do que  eu na época. E, eu não sabia. Me revolucionaram de uma forma absurda.

Fizeram emergir o melhor de mim. A cristalinidade mais pura deste amor singular.

Sei que não deve ser fácil vivenciar o dia a dia deles. Construir o caráter, educar e acompanhar seus passos.

Mas, creio que o Amor, quando exercitado em sua plenitude ,abençoa quem decide levar a cabo este projeto de entrega plena.

27 de março deste ano, o Vinicius Gonzaga Favero  se encantou. Se encantou depois de encantar a todos, mesmo os que não conviviam com ele.

Não frequentava  a família de Eugênia, e, apesar de militar na mesma margem política,  nos aproximamos por conta da Caminhada do Silêncio e do Livro 60 ANOS ANOS DE GOLPE-Gerações em Luta.

Quando a ciência mostra que há um engano, alguém, que tem um cromossomo a mais é definido esplendorosamente, como um ser humano muito, muito “especial”.

A literatura se vê destituída de privilégios, quando faltam palavras para descrever a dor de uma mãe que perde seu filho. E, especificamente, de encarar a realidade e sua substância de horror.

Assim me senti, ao dar um abraço na Eugênia. Uma homenagem rápida. Um silêncio cinzento. Caiu por terra qualquer cerimonial. Não me pertencia aquele momento. Era só dela e do Vinicius e dos que os amam.

E, ali era só o começo de retomar a estrada da vida, resgatando uma força selvagem em se reinventar, para resgatar a alegria e recolher novas sementes que certamente irão brotar desta esperança desesperada.

John Langdor Down, pediatra inglês, em 1886 identificou  a condição genética causada pela presença de 3  cromossomos 21,  que foi batizada de Síndrome de Down. Por conta do significado de Down, em inglês,  ser definido como “para baixo” ou triste”, distante realidade do temperamento destas crianças tão especiais, decreto a partir de agora a SÍNDROME DE UP, porque estas crianças-mel deixam frestas de sol por onde passam .

18 respostas para “SÍNDROME DE UP Shellah Avellar”

      1. Estou emocionada!
        Já convivi
        com crianças Down, na minha carreira de magistério e, sempre era maravilhoso.
        Sentia a amor deles a cada dia.
        Cada encontro, uma emoção como se não me vissem há anos.
        Amei o texto.
        Parabéns por toda está sensibilidade.
        Viva os UPS!!!!!

  1. Muito maravilhoso e explendido exercício do amor a causa, dos diferenciados e escanteados pela sociedade.

  2. Tudo de melhor que podemos receber de alguém , eles oferecem em dobro : é o dobro de amor, de amizade , de alegria e carinho. Vc conseguiu captar dele esse amor 💙 #AmorSim# 💫

  3. Lindo, o seu texto. O Vini e a Eugenia merecem cada uma das suas delicadezas. Que alegria ter tido dele, uma linda e eterna amizade.

  4. Que lindo 🤩 Síndrome de UP tem tudo a ver com Vinicius , que realmente encantava a todos , menino maravilhoso quero ter tido o privilégio de conviver mais , mas as lembranças que tenho são suficientes de encantamento !

  5. Grata pela partilha Shellah, muito lindo e comovente a história, delicadezas dos acontecimentos e percepções e primoroso o texto.

  6. Síndrome de UP sintetiza tudo o que sentimos e queremos dizer. Um texto genial e que emociona à flor da pele.
    Parabéns!

  7. Lindíssimo texto !
    Lúcido e objetivo…..
    Parabéns pela sensitividade de sempre…..
    Eu que já me envolvi com esses seres de Almas vindas de outras esferas, me senti representada por você….
    Mil JAYAS !

  8. Adorei Shellah!
    Concordo plenamente com essa nova denominação “Síndrome de Up”, muito
    Mais a ver com essa criaturas especiais.

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