VOLVER A LOS 64 Shellah Avellar

Volver a los diecisiete después de vivir un siglo

Es como descifrar signos sin ser sabio competente

Volver a ser de repente tan frágil como un segundo

Volver a sentir profundo como un niño frente a Dios

Eso es lo que siento yo en este instante fecundo

Violeta Parra, “Volver a los 17”

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Subindo o tom doloroso até o sublime, minha fala tem um quê de garota, quando se trata do golpe militar de 1964, que está completando agora 57 anos.

Brusca epifania que me aperta a garganta.

Na época eu tinha nove anos de idade. Não sabia do que se tratava. Somente que, de repente, minha casa virou um pandemônio. Ora militares do Exército, ora da Polícia Militar chegavam sem avisar e sem pedir licença e jogavam tudo pelos ares e nos reviravam pelo avesso.

Numa destas vezes, eu brincava no quintal, sol a pino, e uma sombra por detrás me fez voltar a cabeça. E me deparei com uma metralhadora bem diante do meu nariz. Enquanto isso, outros invadiam minha casa.

A imagem de minha mãe desfalecendo e se “urinando” na porta de entrada.

Meu avô trancando as portas e janelas de sua casa, que ficava no mesmo quintal.

Os livros tão amados por meu pai e por mim sendo jogados numa fogueira, sob meus protestos e prantos.

Durante alguns muitos anos, eu ainda desmaiava quando via um carro de polícia ou caminhão verde de manobras do Exército.

Não se falava no assunto. Bullying na escola, quando colegas me importunavam pedindo informações: “Por onde anda o seu pai???”. Naturalmente orientadas pelos pais deles para que eu revelasse o paradeiro do meu e pudessem eles mesmos denunciá-lo à repressão, ou por simples mórbida curiosidade.

Naturalmente não sabia o que era ser esquerda no país.

As incoerências me avassalam hoje, tanto quanto antigamente. Via meu pai ser recriminado e eu também, por tabela, por ser a filha do comunista.

Recebi certa vez uma carta de meu pai por intermédio de um cadete, em que me explicava que estava preso por pensar diferente dos homens do poder e não porque havia cometido algum crime, do tipo roubar ou matar.

Na verdade ainda nem sabia que meu pai estava preso, tamanha era a confusão em que nossas vidas haviam se transformado.

Silêncios. Cochichos. Mistérios. Medo.

E solidão. Muita solidão.

A ARTE IMITA A VIDA?

Em 1997, assisti ao filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto. Baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira. E dei muita risada. Coisa curiosa ver atores e atrizes, cuja característica principal era o humor (por causa das atuações em divertidas séries televisivas), em papéis de drama extremo. Luiz Fernando Guimarães, Fernanda Torres, Pedro Cardoso e Cláudia Abreu, atores que respeito muito e admiro, fazendo os revolucionários e sequestradores. Não me comovia. Não me atravessava, naquele momento.

O que é que é isto, Companheiro? filme de Bruno Barreto

Entretanto, num dia qualquer de 2003, aqui em São Paulo, fui ver Kamchatka, sem ler sinopse, tampouco resenhas. Pelo título achei que deveria ser algum filme passado em um cenário oriental. Totalmente desavisada e com minha filha, que deveria ter uns nove aninhos, me sentei, com pipocas em punho. À medida que o filme foi acontecendo, pela visão de um menino de nove anos, cujos pais eram militantes na ditadura da Argentina (1976-1983), fui me vendo, não na história em si, fui me identificando com o olhar de quem vivenciou aqui no Brasil aquela solidão. A falta de informação e o medo. As cenas se sucediam e uma, em especial, em que o menino corria atrás do carro dos pais, me remeteu a um dia, quando chegava da escola e vi um jipe do Exército levando mais uma vez o meu pai. E eu correndo gritando atrás do jipe na esperança de tentar deter mais uma vez o sumiço dele. O desespero do menino e aquela sensação de perda e de abandono me aterraram e despenquei num choro convulso e catártico dentro do Cine Lumière, no Itaim Bibi. Luzes se acenderam. Havia umas quinze pessoas. Fui até o toalete e lá continuei num pranto convulso que jorrava desapontamento, cicatrizes indeléveis de um tempo ladrão de alegria e sequestrador de ilusões. Era o disparador de tantas mágoas contidas. De tanto desconhecimento. De tanta dor. Ainda assim voltei para ver o filme e continuei soluçando durante toda a segunda projeção.

Minha filha, em sua ingenuidade, sacou: “Você tá assim porque se lembrou do vovô?”. Isso, sem nem sequer tê-lo conhecido, porque ele morrera num “acidente” de carro em 1971. E ela nasceu em 1993.

Kamchatka, de Marcelo Pineyro (Argentina, 2002)

O NÃO PERTENCIMENTO

Mas, e daí? Cresci achando que meu pai morreu num acidente trágico. Hoje, cinquenta anos após sua morte, alguns insistem na hipótese de não ter sido acidente. E me vejo às voltas com a Comissão da Verdade, procurando agulha em palheiro.

Mais um baque num corpo emocional que acredita ter superado essa questão, que, entretanto, volta sempre a incomodar. Reverencio a revolucionária que em mim habita, defendo-a e encaro a disciplina que ela exige para se realizar. Volto à juventude que clamava por um mundo ainda possível naquele realismo utópico, de “resistência”.

Vejo tantas e tantas reportagens, artigos, pontos de vista sobre estes 50 anos do golpe. Entretanto, tem gente da minha geração que passou por ela e não sabe que ela existiu.

Mais uma vez, este sentido de “não pertencimento” me acomete. Não se ouviam os gritos. Não se presenciavam os horrores. Tudo era minuciosamente camuflado dos sentidos dos homens comuns. Só rufavam os tambores para os “de esquerda”. Para os que se achavam inteirados de tudo e lutavam pela Liberdade. Liberdade, esta, questionável aos olhos da elite conservadora e do sectarismo da Igreja. Não me reconhecia e não me reconheço ainda nestes moldes de hipocrisia.

Hipocrisia, esta chaga que sangra e se arraiga cada vez mais nos modelos do establishment.

BASTA!

Sei lá se escrevo bem. Sei lá se estou sendo fiel aos mártires deste holocausto brasileiro, pelo valor universal que eles merecem por uma luta à altura de sua história.

Fiz protestos. Shows em universidades. Peças de teatro e festivais de música. Muito antes de ser uma universitária. Queria que ouvissem o grito da minha dor. Era uma graça que me concedia para me suprir da minha própria perda.

Continuo hoje tentando ser solidária a meus sentimentos e a minha verdade grita: “Chega!”.

Basta de se esconder debaixo da capa burguesa que corrompe tudo que toca. Destas amostras de barro que nos formatam, endurecem e paralisam em nome de uma vida melhor. Das etiquetas e do status que determinam nosso padrão de vida, como “bem ou malsucedido” pelas posses, pelos cargos, pelos títulos e pelas aparências.

Não me detenho mais em nome de nenhuma doutrina, partido, associação, seita ou facção. Sigo em meu próprio nome. Na verdade vou (me) esculpindo, dia após dia, ao encarar e transmutar minhas crenças provisórias.

Me interessa “tentar”, ao menos, ser coerente com o que penso e digo. Para não dar distorção e me transformar num ser humano amorfo, cuja legenda está fora de sincronismo. Dou lugar àquela criança impetuosa.

Não sou de direita. E me recuso a ser muro. Pendo, sim, para a esquerda. Porque é a esquerda que reconheço, através dos séculos de história de exploração do homem pelo homem, que vem gritar contra as injustiças sociais, contra os preconceitos, contra as discriminações de qualquer tipo, gênero, raça, fé e poder econômico.

Não me filiei a nenhum partido nem a nenhuma facção política, a fim de continuar livre para ir e vir. As associações e instituições refletem os preconceitos e estereótipos de seus dirigentes. E cada uma, a seu modo, tenta nos incutir seu modus vivendi, estendendo seus tentáculos para nos transformar em seres robóticos, acomodados numa forminha de gelo, a seu bel-prazer.

À LA GAUCHE

Volvendo à esquerda, quando ela cumpre seu papel revolucionário de ir contra a corrente, do abuso de poder e das ideias. Sejam elas quais forem. Principalmente se ela está a favor dos fracos e oprimidos, dando a eles condição de sair de sua triste condição e ensinando-os a lutar pelos seus direitos, qualificá-los pessoal, profissional e socialmente, mas sem desconhecer seus deveres.

Assim como há pobres soberbos, há ricos humildes. O homem imprime seu valor com ações e frutos. O subversivo é quem subverte o que oprime. Jesus era subversivo aos olhos do governo de Roma. Não havia outra solução a não ser eliminá-lo, por um motivo qualquer, como continuam fazendo com quem incomoda o poder vigente. Há casos em nossa própria história, como Tiradentes e mesmo o contraditório Calabar, que decidiu trocar de lado, a favor talvez de um protopovo brasileiro. E tantos outros por aí afora.

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Protesto contra a ditadura, 1968, Rio de Janeiro

DESANIVERSÁRIO

Nestes 57 anos de desaniversário do golpe de 64, só me lembro de que perdi meu pai tantas e tantas vezes. Ora pelo desconhecimento de onde ele estava. Ora pela própria militância. Ora pela Polícia Militar. Ora pelo Exército. E, finalmente, pela própria morte, em 1971.

E me desculpem os que se consideram “de direita”. Os que se consideram os certos e bem direcionados na vida. Os formadores de opinião. E mesmo alguns acadêmicos e intelectualizados da elite da esquerda. Muitos destes nem sequer sabem o que é militância.

Só me lembro do seu olhar, na hora de irmos embora, quando íamos visitá-lo, quando finalmente soubemos onde ele estava.

E do dia em que finalmente voltou para casa e seus amigos lhe perguntaram qual o sabor da Liberdade. Ele respondeu que ainda era cedo para descrever. Com seus braços amarelos de nicotina até o cotovelo, olheiras fundas, manchas roxas e afundamentos por todo o corpo esquelético. E uma tristeza milenar, que identifico nos olhos de Che Guevara, de Mandela, de Gandhi. Tais como os olhos de Jesus em suas tantas representações pictóricas. Imagens que vêm, vez por outra, atormentar meus eternos questionamentos.

Idealismo? Endeusamento? Sei lá… Meu pai era um pobre militante anônimo para as estrelas da luta armada em todo o país. Como centenas de outros hoje desaparecidos, sem paradeiro, sem história. Apenas um fantasma que nos assombra. Em nome de um passado sem glórias.

Mas, para mim, era, e é, um herói que me ensinou, pelo exemplo, que todos os homens são iguais, e também a não se curvar diante da ilusão de poder, seja ele qual for.

Imperfeito. Assumia suas incoerências. E ouvia com atenção minhas admoestações de menina e moça. Me dando ares de importância. Apoiava minha forma de realizar e me deixava livre para errar e acertar por minha própria conta. Parece que sabia que iria logo embora e procurou passar, desde cedo, livros e ensinamentos, em que me calco até hoje.

Simples. Direto. Uma oralidade ímpar. Carismático e amado por todos, ou quase. Naturalmente não pelos que se consideravam os baluartes da história dos supostos não pensantes. Ele, para estes, era a ovelha negra, a ser extirpada da sociedade. Mas o seu amor incondicional pelo ser humano me encantava e me comove até hoje. Guardo de 64, e dos anos de ditadura, marcas que dificilmente o tempo apagará. Assim como alfinetes esquecidos por algum alfaiate distraído. Mas não faço a apologia da necrofagia. Entretanto, apesar das infâmias praticadas em nome da lei e da ordem, nenhuma especulação escapará da trágica realidade da história.

Mas o amor que aprendi com este amigo, irmão, companheiro e só por acaso meu pai me acompanha, e me faz não desistir cada vez que encontro muralhas de incompreensão. E, resistindo à hipocrisia, me rendo à Liberdade.

Oh! Liberdade! Liberdade!

Que ela abra suas asas sobre nós.

E volvo a los nueve, doce, diecisiete, dieciocho, tantas vezes quantas forem necessárias, para louvar o presente de ter tido Almair Mendes Avellar como meu pai, meu país nesta “encadernação”.

Nota da autora:

Escrevi esta matéria em 2014.No Desaniversário de 50 anos do Golpe Militar de 1964.Este texto, despertou a atenção de vários jornalistas .Fui entrevistada pelo Jornalista Peu Robles para o site MEMÓRIAS DA DITADURA. ( Memórias da ditadura – Instituto Vladimir Herzog ) que percebeu minha agitação e me recomendou para a Clínica do Testemunho do Instituto de Projetos Terapêuticos -projeto de um grupo de Psicanalistas e Psicólogos que acolhiam em rodas de conversa e desabafos os ex- presos políticos , exilados e seus filhos e netos. Este projeto durou 2 anos e lá fui recebida com calor humano por todas e todos e pude falar com tranquilidade sobre o assunto depois de quase 45 anos de silenciamento.

Depois participei do projeto Margens Clínicas entre outros.

Posto aqui o registro da Oficina Retalhos de Memória da designer Camila Sipahi, que fazia parte de nosso grupo ,onde bordamos sobre fotos nossas e de nossos queridos e queridas redefinindo as memórias e reconstruindo os cacos da devastação que a Ditadura Militar deixou em nossos corpos, corações e mentes.

“Na Clínica do Testemunho, através dos Projetos Terapêuticos e memórias de dores revividas como resquícios da Ditadura Militar, alinhavamo-nos uns aos outros. Aprofundamos a busca por relações mais profundas, entremeadas por emoções recortadas e bordadas no processo.

MEMORIAL DA RESISTÊNCIA SP

Este Estandarte está exposto no MEMORIAL DOS DIREITOS HUMANOS em Belo Horizonte,MG

#aMemóriaSIM #aVerdadeSIM #aJustiçaSIM

HOJE

Estamos em 2021.A pandemia do Covid 19 e suas mutações ,dispara como um raio sob o descontrole de um governo eleito pelo povo, pós novo golpe em 2016.

Aos berros de uma evocação à família e à igreja, destituíram a primeira mulher eleita presidenta do Brasil.

E,hoje, com mais de 300 mil brasileiros mortos pelo Covid, e outros tantos milhares internados em estado grave,e outros à espera de insumos, medicamentos, tratamentos ,leitos e vacinas, o nosso desgovernante tenta desesperadamente se manter no poder, desestabilizando as instituições , a economia, a educação ,as ciências e as artes.

Uma arrogância cega que deixa um rastro de dor e miséria, e, ainda assim, encontra ressonância em seus vassalos, com os quais, articula constantemente perfídias contra o povo brasileiro.

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4 respostas para “VOLVER A LOS 64 Shellah Avellar”

  1. Suas palavras ficam ressoando mesmo depois de lidas. Vão renovando a minha e a nossa eterna sede de justiça social. “… e que as crianças cantem livres sobre os muros …” como cantava Taiguara.

  2. Texto que nos inspira, que nos dá força para continuar lutando por dias melhores. Não conhecia essa face de sua vida de criança atormentada pela cruel opressão da ditadura. Agora sei da onde brota essa sua sensibilidade guerreira da justiça.
    Grande abraço companheira🥰

  3. Só quem viveu a História sabe a dor da injustiça, na busca da Justiça. São marcas que as gerações atuais só conhecerão nas palavras e nos livros de História, quando lá elas estarão, quiçá. Por outro lado, é saudável conhecer essa realidade apenas nas palavras pois sabedores seremos que o arbítrio e a realidade na carne perderam e a democracia vicejou. Lutemos por isso. A luta continua!

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