– Quem é você? –
Ela para. Olha fixamente o espelho à sua frente.
Fria e inconteste, aquela voz ecoava em sua cabeça, chacoalhando-a impunemente em um tom devorador de lobo faminto.
Na velocidade de um raio, que sem deixar dúvidas, vai registrando cada ricto de dor passada, drama alheio de sua loucura, sulcada nas íngremes camadas de uma vida.
Desbrava as suas entranhas com a navalha afiada e impiedosa da realidade.
Não se esquece dos altos e baixos, nem do fog que acinzenta as cores que lhe foram sequestradas.
Das tempestades que lhe açoitaram as costas e lhe fizeram perder a postura empertigada.
Do suor que explodia, irrigando os poros e drenando o pânico.
Ela não pestaneja. Enfrenta o espelho.
Responde:
– “Não sou mais a artista. Sou a minha própria obra de arte. Sou o frêmito da minha embriaguez.”
Mas, o intrépido espelho, revela as angústias dos sonhos não realizados.
Questiona o pescoço, já não tão viçoso como outrora. A pele flácida do colo. Um tecido que o ferro do tempo não alisa. Testemunha dos anos desleixados nos cuidados consigo mesma. Um papel impossível de rasgar
Os sinais que riscam sua face. Rios secos de um canyon escarpado pelas perversidades dos seres.Humanos? E pelas suas pequenas e inconfessáveis mesquinharias.
As manchas, companheiras dos sóis abrasadores da areia que abrigava suas costas sedentas de calor.
O olhar perdido. E o desespero da espera por um final. Feliz?
Ele chega por trás. Fica imóvel observando este solilóquio. Cúmplice permanece calado. Observador privilegiado deste momento mágico.
Imperturbável, ela continua a velar atentamente por aquela que nunca foi, e pela que é.
Uma rajada de vento bate levemente a janela. A lua ,grávida ,se insinua. E o gato, Noir, salta no quarto.
Mas, nada. Ambos continuam impassíveis.
Noir, com suas duas esmeraldas cintilantes perscruta os dois. Bamboleia por entre suas pernas, como uma serpente que aprova a escuridão e as profundezas da tensão.
Depois, se acomoda e se enrosca gostosamente num sofá de veludo negro que parece engoli-lo.
Nada parece se mover neste espaço sem lugar.
Há num como no outro aquilo que não foi vivenciado. Como uma sombra obscura de uma vida roubada.
Entretanto há a pulsação invisível. Do trágico. Do avesso.
– “Tola. Há qualquer coisa que ficou por se expressar. E se perdeu nos labirintos da rotina”. O espelho sussurra.
Ele, porém, descansa a mão sobre seu ombro direito. Abre com a outra mão a porta do armário. E se fixa no espelho que reflete o dela.
Ambos ficam assim, por um tempo.
Seus olhos se encontram. Uma conversa muda.
O filme de suas vidas passando nos seus olhos.
Por um instante parecem sorrir sem ao menos entreabrir os lábios. No entanto, este segundo, arrefece o mundo de suas deformidades.
Esta cerimônia sela uma parceria.
Não há flores. Festa. Anel de Brilhante.
Apenas um mútuo acordo de caminhar juntos.
O mergulho no escuro de um futuro incerto. Como sempre foi até aqui. Durante anos. Quantos??? Não importa.
Aquela intensidade é uma força que colabora com o todo.
Ela deixa escorrer uma lágrima.
Ele a enlaça suavemente. Para que aquela emoção aguda no canto das pálpebras cumpra seu curso.
Seu peignoir de seda escorre suavemente até o chão. Percorre cada reentrância e seus relevos lentamente.
Leva com ele todas as máscaras que a aprisionavam com seus laços neuróticos.
Da terra que absorve seus terrores. Da água que lava as culpas. Do fogo que lambe suas decepções e ferve as paixões. Do metal que rasga o pesar das perdas. Do grito que liberta as mentiras escondidas. Que eliminam a ilusão de solidão, com a certeza de que tudo é risco e único. Que abrem as portas dos apegos e os deixa alçar voo.
Ele espera que este banho de seda a refresque de suas nefastas nuvens.
A lua invade a janela e derrama prata em seu dorso nu. Sopra a poeira dos erros e acertos, da dimensão fatídica e concreta dos caminhos de cada um.
Os pelos dela se arrepiam sob seus dedos.
Ela se vira e o abraça.
E, assim permanecem. Até que a morte os imante no sonho e os liberte do silêncio.
O espelho murmura: “A verdade só encontra semelhança em mim, seu próprio espelho. E só a loucura pode libertá-la. O louco sou eu. Você. E o cara aí do seu lado.”
Noir abre os olhos verdes brilhantes e logo os fecha preguiçosamente.