Criado sem escola, alfabetizado pela vida. José Alves Apolinário, codinome Jurandir, por causa da morte do primogênito de Sebastião e Inácia, morto um ano antes do nascimento do personagem principal deste roteiro. Assim, sua história já carrega certo mistério, em momentos de realidade fictícia, em que o tempo não é nem linear, nem rápido, nem lento, nem circular, mas parece haver se volatizado em Coxixola, município do interior da Paraíba, a 247 quilômetros da capital, João Pessoa, nos anos 1950, quando Jurandir botou a cara neste mundão de meu Deus.
O nome, de origem tupi-guarani, que significa “trazido pela luz do céu”, parece justificar a apropriação do nome do irmão e o enterro, como ele mesmo diz, do “Zé em seu lugar, registrado no cartório de Deus”.
Cabelo preto, liso e comprido. Porte ereto. Olhar de um brilho intenso em noites abissais. Fala mansa. Um tanto tímido, mas decidido. Não se sente, nem busca ser melhor, nem pior que ninguém. Parece índio. Se diz índio. É um índio.
Infância a lenha
Os dias se passavam em Coxixola, numa época sem as modernidades da eletricidade, numa casa de taipa e pau a pique. O fogão a lenha, de duas bocas, fumegava ao alvorecer. O milho cozido, o xerém (cuscuz de milho), o curau e seus derivados e a coalhada de leite de cabra eram os acepipes da família, que madrugava para ir à roça garantir o sustento.
O almoço era feijão com farinha, que lhe conferiu a estrutura que o mantém saudável e forte até hoje. De vez em quando, mas muito raramente, tinha carne de bode ou de carneiro, mas arroz nem pensar. Era artigo de luxo. Só no Natal.
Algumas vezes, caçavam codorna, tatu e lagarto para dar um colorido diferente à rotina.
No entardecer, de volta para casa, repetindo o cardápio do café da manhã, o avô índio João Apolinário enriquecia o imaginário da criançada com histórias de cangaceiros, acumuladas em seu passado nativo de tribo desconhecida de Jurandir, traindo a memória, que o tempo, seu grande inimigo, vai destruindo.
Em volta da fogueira, nas noites iluminadas pelo céu estrelado do sertão, o avô mastigava raízes, macambira e coco. Fiel à tradição indígena, embalava os sonhos que nasciam nas camas de madeira com colchão de palha de banana, construídas por eles mesmos.
A infância corria solta pelo mato, nas brincadeiras de senhorio, traduzidas pela cultura coxixolense. Se inventava curral de pedras, onde se juntavam os ossos que simbolizavam os bois, as vacas, os jumentos e os jegues negociados ao dinheiro de papel de cigarro, ao qual se atribuía valores de moeda corrente no país naquela época. Continental a 5 cruzeiros, Hollywood a 2 e Astória a 1.
Num capitalismo de cordel, já se revelava o futuro empreendedor, marca dos nordestinos que avançam na cidade grande. Sonhava com o poderio das famílias de fazendeiros, que davam o “ar de sua abastança” no povoado local. Famílias que hoje ainda se aboletam por lá, em cargos municipais vitalícios, garantidos pelo mesmo nepotismo de outrora.
Quando os bichos e os moleques se feriam, tomavam o caxete (comprimido) de cipasol, melhoral e meramicina para tirar o aperreio das dores em geral. Mas quando o caso era traquinagem de torar um braço, tinha mesmo de chamar Dona Chiquinha, a benzedeira. Por causa disso, certa feita, moleque, Jurandir recorreu à rezadeira, que fez uma pasta de clara de ovo e carvão em cinzas, que amarrava com casca de cajueiro, e todo dia botava trouxinha do emplastro com panela de água quente no machucado. Costurava e regava com uns galhinhos. Orgulhoso, hoje exibe o braço, sem nenhuma sequela. Ele reforça: “A fé cura a gente”.
Os dentes eram arrancados sem anestesia pela mãe, o que lhe garantia uns quatro dias de repouso para amansar a dor. A pasta de dentes era a raspa de juazeiro e a escova, o dedo.
As investidas nos jogos de amor começaram cedo, de 9 para 10 anos, no mato, onde a meninada praticava a sem-vergonhice própria das funções varonis. E se esquentava à noite, de óleo de coco no cabelo, no arrasta-pé azuretado, ao som do forró “pé de serra”, tradicional do sertão, com sanfona, triângulo e zabumba.
Só tinha de cuidar de não tirar a virgindade das moçoilas. Ou casava, ou o cabra era jurado de morte. E também tinha de casar, preto com preto, branco com branco, rico com rico e pobre com pobre. Se saísse desta dobradinha imposta pela tradição, o cabra estava lascado.
O rádio assumia a responsabilidade de traçar formas e conteúdos do mundo lá fora. E a “Hora do Brasil” mantinha o povo muito bem “informado”. Pelo fio tênue do onírico exalava o som de Luiz Gonzaga e Genival Lacerda. Teve até show ao vivo numa difusora instalada num jipe.
O último pau de arara
Os dias corriam plácidos e horizontais. Então, deu aquela vontade de ganhar o mundo, conhecer novas terras. Essa inquietação fez Jurandir, já moço feito, aos 20 anos, sacudir a poeira de Coxixola e pegar o pau de arara para o Rio de Janeiro.
Ficou uma semana em Botafogo, na capital, mas sua alma de índio o levou para São Pedro da Aldeia, antes que o vazio da vida moderna se instalasse de vez em seu âmago.
Trabalhou na lavoura, por cinco anos, plantando mamão, laranja, limão e fruta do conde, numa fazenda a trinta minutos da cidade. Depois mudou-se para lá, onde trabalhou, por quatro anos, como padeiro, com carteira assinada. Aí, animado, diz que aprendeu a viver. Até então, não tinha noção do que era.
Voltou para Coxixola. Passou dois meses e regressou de vez, direto para São Paulo. Ficou na casa de um amigo em Cangaíba, na zona leste, e trabalhava numa padaria na Vila Mariana, na zona sul.
Depois, noutra no Brooklin, também na zona sul. Investiu então em duas linhas telefônicas. Um negócio da China. Vendeu e comprou este barzinho, principal locação deste roteiro, que abriga sua história e sua vida.
O CD-Bar de Jurandir
Sempre gostou de música. Começou tocando forró, depois brega sertanejo. Hoje tem amplo acervo em seu bar, do qual perdeu a conta exata, com mais de cinco mil títulos de CDs e DVDs nacionais e internacionais, de todos os estilos.
Pelo CD-Bar já passaram Luiz Airão, Bruno & Marrone, Miltinho (Baterista do Jô), Rubinho do Zimbo Trio, entre outros que vão lá à guisa de pesquisa de sons.
O Bussunda, do “Casseta & Planeta”, batia ponto na feijoada de sábado. Deixou saudades no cenário nacional e na mesa cativa do CD-Bar.
Aqui se misturam classes de A a Z, que desfilam, todos os dias, em busca de novos arranjos, ritmos, balanços, tenores, barítonos, sopranos, harmonias e linhas melódicas.
Os professores e alunos da Escola de Música Tom Jobim se revezam e volta e meia estacionam no CD-Bar. Tem dia que vende até 100 CDs, para clientes variados.
Tem gente que vem há mais de 20 anos, para o lanche, o salgadinho, o almoço, a cerveja, o café ou o papo amigo para abstrair da correria.
É distribuidor juramentado de grandes distribuidoras, como a Universal, a Estação CD e a Atração. Atende pedidos pelo telefone e pessoalmente. Continua pesquisando. Observa e aprende com os clientes. E vai trazendo o que o povo pede.
Depois de um relacionamento de 20 anos, do qual herdou dois filhos, com quem, infelizmente, hoje não mantém contato, inaugurou outro romance. Wania, pernambucana arretada, veio chegando de mansinho para o cafezinho de todo dia. E deu-se o encontro. Já há 15 anos, com mais dois filhos, Lucas e Sue Ellen. Tem muitos amigos na casa própria, perto do Terminal João Dias, ali na zona sul, que engrossam a família. A rotina é de casa para o trabalho, do trabalho para a casa. Três vezes por semana, vão à Igreja Universal, depois que Jurandir fecha a loja-bar. Nos fins de semana, o destino são as churrascarias e os shoppings. De vez em quando, um show de Zezé Di Camargo e Luciano. Viajam às vezes, nas férias, apenas por quatro dias, e voltam correndo para o bem do negócio.
Jurandir diz que, se tivesse vindo mais cedo para São Paulo, seria um homem muito rico. Tal qual seu pai, que largou tudo para trás, foi para Minas Gerais, constituiu nova família e se perdeu de Coxixola e das raízes.
A felicidade, conquistada no exercício de uma vida simples, é exemplo de harmonia e tranquilidade. Seres fora do comum dentro da sua maneira de ser comum.
A vida impôs aos CDs e DVDs valor também sentimental, espécie de dignidade humana. Fórmula talvez derivada do romantismo de sua adolescência.
Ao som de “quando eu estou aqui, eu vivo este momento lindo”, na voz de Roberto Carlos, me despeço, com a cabeça cheia de ideias e com a certeza de voltar a qualquer momento para uma pausa na utopia, desdenhosa de realidade, ao pé do balcão do CD-Bar de Jurandir.
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