MEU ROCHEDO DE GIBRALTAR Shellah Avellar

Para Emy Avellar

Filha legítima de Saturno. Capricorniana com ISO 9000. Sim. Esta é a minha mãe.

Com tudo o que tem direito. Ou não. Até porque Saturno só tem deveres.  E disciplina. E regras e mais regras e limitações. Seu êxtase é a restrição.

“ Não” é sua palavra de ordem. Costumo dizer, que os capricornianos ao nascer, quando é dada a palmada inicial, marca do despertar propriamente dito, primeiro dizem “ Não”. Depois, choram.

Quando penso em minha mãe, a primeira imagem que me vem é do Rochedo de Gibraltar.

Sim. Ela está sempre lá. Inquebrantável. Impávido colosso. No mesmo lugar. A coluna de Hércules.

Quando adentra um ambiente qualquer, escolhe sua cadeira ou poltrona e ali finca suas raízes. Toma posse. Ali é seu trono. Dali ela observa o mundo e as pessoas e ordena.

A sensação que dá é que depois de meia hora, as raízes começam a brotar de seus pés e mãos e vai nascendo um carvalho portentoso que abriga a todos com sua sombra e nos alimenta com seus frutos saborosos e nos refresca com sua ramagem abundante.

Infância difícil. Aprendeu muito cedo a se virar. Para ajudar a mãe a pagar as contas.

Feliz de quem a contratava. Dedicada e competente. Tudo que um chefe poderia desejar de uma trabalhadora ideal: obediência, pontualidade e fidelidade aos protocolos.

Casou-se aos 19 anos com o primeiro e último amor de sua vida.

Entretanto este conto de fadas foi atravessado por alguns terremotos. A primeira e a segunda gravidez não vingaram. Até, que por fim, na terceira tentativa, depois de muitos exames e procedimentos, aconteceu a minha aparição, não sem dar bastante trabalho.

Nasci ao contrário, e sagitariana da Gema com Júpiter pulsando nas veias seu grito de liberdade e com Urano no meio do céu, já dando sinais de que vinha para contestar as regras e desordenar os princípios rígidos de Saturno.

Desde cedo estas diferenças se tingiram de cores mais nítidas e com o passar do tempo o embate era constante.

Como a relação era vertical, ao desobedecer, eu apanhava, todo dia e outro também. Por todos os motivos ou motivo algum.

Naquela época de criança, cresci achando que minha mãe era injusta.

Mais tarde compreendi que ela brigava consigo mesma, por não saber definir sua insatisfação e revolta contidas. E, eu, era a próxima mais próxima.

Entretanto ela me dizia: -Se desobedecer, você vai apanhar. Você escolhe!”

Eu escolhi apanhar. Porque ia dar no mesmo. A surra era certa. E, desobedecer era “minha praia”. Porque o simples fato de eu existir já deixava explícita uma oposição. Por nossa visão absolutamente diversa de mundo .

Desenvolvi um mecanismo de resistência e me alienava durante a surra. Pensava em outra coisa e não sentia doer.

Aí, para complicar mais ainda as coisas, veio a gloriosa ditadura. Que entrou de botas em minha casa e na minha vida. Era mais uma muralha para pular.

Me lembro que meu pai , me enviou uma carta ,através de um jovem recruta, onde dizia que estava preso por pensar diferente dos homens do poder.

Aquilo, caiu como um raio na minha cabeça. Eu também apanhava, apenas por pensar e agir diferente do “aparente” poder vigente dentro da minha casa. Que ironia!

Presenciei a luta de minha mãe, incansável em correr atrás de saber onde estava meu pai. Levado tantas vezes pela repressão. Violência esta, que entrava sem pedir licença. Invadia nossas vidas e nos destroçava várias vezes.

Ali se revelou a filha de Saturno. Apesar do medo, agarrou a vida “pelos chifres” e foi atrás de advogados. E, buscou nos quartéis do Estado do Rio de Janeiro, toda e qualquer possibilidade de informação sobre o paradeiro de meu pai. No meio de tanta traição e medo, a saga começou. Estudávamos nos ônibus as matérias para as provas. Ela cursava o magistério, sob incentivo de meu pai. E eu o ginásio. Íamos no Dops(Departamento de Política e Ordem Social) do Rio e Niterói. AMAN(Academia Militar de Agulhas Negras) em Resende e BIB (Batalhão de Infantaria Blindada)em Barra Mansa. Só de escrever estas siglas ,ainda me arrepio.

Testemunhei sua luta para defender e fazer de tudo para tentar libertar o seu companheiro.

No meio de tanta insegurança o Rochedo se manteve lá. Sendo chicoteado pelas ondas turbulentas da vida.

Terminou seu curso, tirando o primeiro lugar do Estado do Rio de Janeiro e lhe angariando a possibilidade de escolher em que escola gostaria de lecionar, em qualquer lugar do Estado do Rio.

E, finalmente quando localizamos o meu pai .

Dois anos e meio após esta desdita de mudanças e de idas e vindas, voltou para casa.

Três anos mais tarde, quando estava começando a se sentir livre.

A vida lhe pregou outra peça.

Mamãe perdeu seu amado. Desta vez ele se foi para não mais voltar.

Enviuvou aos 42 anos. Nunca mais se casou.

A depressão veio e a prostrou. Foi um ano de desespero.

E, eu, que precisava tanto de colo, virei sua mãe.

Precisava tirá-la daquele estupor.

No ano seguinte abriu o curso de Ciências Exatas. Exultei! Era a sua chance de renascimento. Fiz sua inscrição no Vestibular e a minha também, para que não se sentisse deslocada. Passamos. Lá reencontrou amigas de infância. Foi a glória. Sua outra paixão a salvou. A Matemática viera para ficar e se casaram para sempre.

A alegria do desafio voltara a reinar lá em casa. E o vazio foi preenchido pelas amigas barulhentas da faculdade que estudavam e fofocavam juntas.

Outras chuvas vieram. Mas, os anéis de Saturno a mantinham de pé.

Depois perdeu o pai.Um sentimento sem nome.

Lhe dei uma netinha e o gosto pela vida se reacendeu.

E, então se foram a mãe e a irmã. Uma em seguida da outra. Um silêncio solitário por alguns meses.

Teve um diagnóstico de degeneração da mácula. Com a visão comprometida, não poderia deixá-la sozinha , ou com estranhos. Esta tarefa era minha. Diante disto, eu a trouxe para morar comigo por aqui em Sampa.

Foi o tempo certo para aparar as arestas. Muita conversa. Muitas gargalhadas e palhaçadas minhas e da neta para levantar o seu astral. Alguns estranhamentos no início. Mas, temperamos tudo com muito amor ,parceria, companheirismo e perdão.

Sobrevivemos com galhardia.

Até que voou, como um passarinho.

Disse: -Estou cansada. Virou-se para o lado e se foi.

Para encontrar seu grande amor.

Em casa. Sem dor. Sem Uti. Sem hospitais.

Ali estava eu. Lado a lado. Até o fim.

Com a sensação do dever cumprido.

Mais uma vez.

E, agora o que resta é a certeza do reencontro.

E, vez por outra, quando preciso de um alento, me sento na pracinha, embaixo do carvalho e sinto sua presença e sua voz a me sussurrar: -Não desista! Você é uma vencedora!

E ressoa em meus ouvidos:-Tenho muito orgulho de ser sua mãe.

E eu respondo- Sou uma felizarda por encontrar a resistência que moldou em mim a revolucionária.

Obrigada, mãe. Guerreira Saturnina. A honra é minha.

E veio uma floração de claridades.

Boralá em frente!

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Gibraltar – Último símbolo do domínio dos mares pela Inglaterra | Monitor Mercantil

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