A TEIA DE PENÉLOPE Shellah Avellar

Para Vovó Lila

Olhar sereno. Profundo. Silêncios ensurdecedores.

Gavetas de retalhos coloridos. Terços imantados nas ranhuras do seu tempo.

Vovó Lila era um oásis no meio das tormentas.

Sim. Sua vida era o entretecer. Era o que acontecia entre alinhavos e desalinhos.

Infância intrigante. Morou numa fazenda que tinha escravos( o que me causa bastante desconforto). Sua mãe, a única filha mulher entre homens. Seu pai, um capataz. Sua mãe foi deserdada por preferir um trabalhador rural e não os pretendentes indicados pelos pais.

Mudaram para um sítio.

Daí, já vinha o conflito, que iria chulear sua história.

De agulhas e linhas em punho vai costurando sua vida, um rosário de lágrimas.

Mocinha, se apaixona pela primeira vez. Mas, segundo ela, o tal moço foi-se embora para nunca mais voltar, deixando seu coração desalentado e algumas ilusões desbotadas.

O destino lhe reserva uma segunda chance. Moço bem apessoado, lá das bandas de Niterói, capital do Rio de Janeiro na época, entra em cena e reacende seu coração desesperançado.

Cai em suas graças e fica à mercê de sua mente afiada e de seu humor ácido. A boa e velha parceria Taurus e Virgo se consolida.

Mas, oh…o equívoco. O tempo lhe mostrou uma outra face deste taurino às avessas, que ao invés de prover, jogava sua vida fora nas cartas e no álcool.

E a insegurança material era a bola da vez. Vivendo de favor, de casa em casa. O que lhe deixou marcas indeléveis e em suas filhas.

Inverteram-se os papéis. A mulher sensível e disciplinada se vira do avesso e forra sua vida com o aprendizado do ofício de costurar e bordar.

Afinal, já existem duas filhas para sustentar. É preciso se fortalecer e resistir às intempéries.

Dona Lila vai à luta. Costura dia e noite e noite e dia. Borda e tricoteia. De tudo faz arte e chega a dar aulas de bordado na multinacional Singer do Brasil.

O resultado é a herança de colchas, toalhas e lençóis de linho bordados à mão e à máquina. Primoroso trabalho que hoje lhe daria um bom troco. Pelo que vejo nas lojas de roupas de cama e mesa , de alto luxo por aí nos shoppings da vida.

Eline Sağlık , como diriam os turcos: -Saúde para suas mãos diligentes e precisas.

Tudo o que fazia era com esmero. Desde a arrumação da casa até a lavagem das roupas e impecáveis passadas a ferro. Sua comida era deliciosa. O aroma dos temperos engoliam a atmosfera da casa e nos fazia salivar.

E suas confecções de indumentárias certamente causariam algum estupor e excitação à Chanel e Dior. Até os meus dezoito anos, eu desenhava e ela confeccionava minhas roupas.

E, repetia, com orgulho:-Uma boa costureira se conhece pelo avesso e pelo acabamento “.

Tudo com a precisão de um reloginho suíço. Creio que desbancava as formiguinhas. Tenho minhas dúvidas se não há um monumento erigido à Dona Lila nos formigueiros profundos deste planeta .

Sinto, até hoje, falta do cheirinho gostoso de sua broa de fubá, que ficava pronta às 15h em ponto. Era só correr para a cozinha que lá estava a majestosa broa, no centro da mesa, junto de um bule de café fumegante.

Eu dispensava o café. Hábito de consumo, que só fui adquirir em São Paulo, muitos anos depois. Eu pegava uma faquinha e tirava somente a casca da broa, porque nunca gostei de maçaroca, nem miolo de pão e nem de pastas. Ela ficava fula da vida e saía correndo atrás de mim e gritava:- “A ratinha já passou por aqui”. E, isto, era todo santo dia e outro também.

Quando meu pai se casou com sua filha mais velha, sua primeira providência foi comprar a casa onde meus avós maternos moravam de aluguel, para sanar de vez a preocupação de minha vó e minha mãe, de ter um teto para chamar de seu.

E, este gesto lhe rendeu uma gratidão milenar e o título honorário de filho forever and ever.

Sempre soube que meu avô materno era adicto de jogos de azar e dependente de álcool. Entretanto, nunca o vi alterado porque minha avó Lila tinha dado um basta naquela vida de esbórnia, para o bem de todas e felicidade geral da nação, colocando remédio em sua comida, para frear o vício que alimentava outros vícios.

Quando meu pai morreu, num acidente de automóvel, meu avô, olhos em chamas, apareceu, embriagado, lá em casa. Eu abri a porta. Ele se ajoelhou e me pediu perdão, dizendo que ele deveria ter morrido e não meu pai. E que tinha perdido um filho. Caiu em prantos e eu com ele. Nos abraçamos e só consegui sentir paz por aquele sentimento tão contundente, misto de admiração e dor.

Anos mais tarde, quando meu avô foi acometido por um câncer avassalador no baço , minha avó Lila cuidou dele com tamanha dedicação e carinho, como se fosse um bebê. O bebê que não cresceu. Que ela cuidou até o fim, como mãe, irmã e companheira.

Lembro-me bem, quando ele, esquelético e já bem fragilizado, sentado no sofá, e minha avó de pé. Ele abraçou sua cintura e descansou a cabeça em sua barriga, e num gesto extremado de arrependimento, agradeceu a ela por tudo e os espinhos foram dando lugar às rosas despetaladas por toda uma existência.

Quando, finalmente, ele partiu, sentada a seu lado no sofá da sala, presenciei seu choro contido e liberado aos solavancos da dor de toda uma jornada de renúncia à sua própria felicidade em prol dos seus.

Ela liberava um suspiro profundo a cada expirada como se o peso fosse demasiado pesado para descarregar de vez.

Anos depois, quando decidi me separar de meu marido, após um ano de relacionamento, e dar um basta num casamento com afeto, mas, prematuro e imaturo, fui me aconselhar com ela. Eu disse: – Não quero continuar. Creio que cometi um equívoco. Gosto dele, mas não quero fazê-lo sofrer. Creio que nos distanciarmos agora será melhor para os dois.

Ela disse: -Faça isto minha filha. Antes que seja tarde demais. Eu não pude fazê-lo. Faça por mim e por você.”

Algum tempo mais tarde, já em São Paulo, quando pari minha filha, e resolvi criá-la sozinha, ela estava lá, de braços abertos para recebê-la.

Pude apreciar finalmente sua alegria.

Seus olhos brilhavam. Era a continuidade. A vida em seu esplendor.

Ela pôde ser, simplesmente avó, na sua mais completa tradução.

Testemunhei seus paparicos e sua volta à infância. As duas, ela e minha filha, brincavam e brigavam pela posse de brinquedos. Uma me fazia queixas da outra.

 E, isto, era cômico e lindo.

Ainda guardo a lembrança de você, vovó, na sua poltrona favorita, com minha filha bebê em seu colo e as duas dormindo o sono dos anjos.

Anos mais tarde, fui acolher minha tia, sua filha mais nova e minha madrinha, sem filhos, que teve um diagnóstico implacável de câncer no pâncreas, fígado e rins. Os médicos lhe deram 3 meses de vida. Fui para os Estados Unidos. Os médicos se enganaram. Ela sobreviveu ainda um ano e meio, após este diagnóstico.

Quinze dias depois que cheguei lá, minha vó Lila, faleceu na Santa Casa de Barra do Piraí, no estado do Rio de janeiro..

Não pude estar com ela. Não havia tempo hábil para chegar para o velório e sepultamento.

Morreu sem saber que a filha mais nova tinha câncer e estava com os dias contados. Não sabia conscientemente.

Mas, resolveu ir-se embora para recebê-la, lá num espaço sem tempo e nem lugar, onde os sonhos se tornam realidade.

Ela não se cansava de repetir em várias outras ocasiões , que eu “puxei a ela, nas artes.”

E eu sou grata, vovó, por você achar que estou à altura de seu talento e de seu DNA.

Espero jamais decepcioná-la, estrela que abdicou de seu brilho. Passarinha que optou pela gaiola. Força obscura de seu elemento terra que explodiu em frutos para dar de comer às filhas. Húmus que vomitou flores para enfeitar a opacidade de seu entorno.

E, eu sei, que em alguma nuvem cor de rosa, você está sentada confortavelmente, tecendo a teia de Penélope, aguardando o retorno de seu Ulisses, para que a profecia dos contos de fadas se concretize e você possa desfrutar da felicidade que tanto merece.

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Penélope – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

2 respostas para “A TEIA DE PENÉLOPE Shellah Avellar”

  1. Uma bela história.Gostosa de ler e refletir sobre as relações humanas. O amor, medo, desafios , principalmente das mulheres. O que passamos de geração em geração foi e, é conquistado com muita dor e amor.

    1. Sem palavras para falar, desta linda história de vida e de amor, amor imensurável, sem limites, cumpriu com sua missão aqui no nosso planeta Terra. Minha mãe foi uma bordadeira de mão e na máquina Singer. Trabalhou muito para não deixar os filhos sem comida e olhe que as vezes faltava, foi uma guerreira, empenhava até sua aliança e anéis para não nos faltar alimentos e meu pai a beber e procurar outras mulheres. Chegar em casa criando brigas. Remédios para deixar a bebida, deixou-o entoxicado e rezas não resolvia. Foi uma verdadeira Odisséia. Mas vencemos. Ele faleceu aos 86 anos com diabetes e tinha deixado a bebidas a 44 anos.

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